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terça-feira, 25 de setembro de 2007

A fabricação da opinião pública

Não tem sido raro encontrar, na grande mídia, a utilização do conceito de "opinião pública" para aferir um suposto consenso em relação a determinadas questões em pauta. Esse conceito foi fartamente utilizado, no ano anterior, para sugerir que a população estava indignada com as denúncias defenestradas por Roberto Jefferson. O respectivo deputado, depois que seu fuzilamento político tinha se configurado como eminente devido a uma denúncia de que ele seria chefe de um esquema de corrupção nos Correios, estrategicamente redirecionou as câmeras para o governo alardeando o famigerado "mensalão".
Logo após a ampla divulgação e espetaculzarização da denúncia de Jefferson, foi atribuída ao povo a defesa de certas atitudes e opiniões que nunca vieram a se demonstrar de forma objetiva. Um modesto exemplo dessa tentativa de fabricar a opinião pública foi o artigo de Merval Pereira, publicado em O Globo, em março de 2006 , no qual ele reporta uma análise do cientista político Marcus Figueiredo:
"[...] não há nada que ligue diretamente Lula aos acontecimentos [do mensalão], e ele conseguiu convencer que não sabia de nada. Mas os deputados que acham que o povo tem memória curta podem ser punidos nas urnas, afirma Figueiredo, lembrando que há inúmeros casos em que essa punição veio, sendo o mais famoso deles o do ex-presidente Collor, que não conseguiu ainda voltar à vida pública, nem mesmo em Alagoas." Advinha quem na eleição que se seguiu voltou à vida pública ocupando o senado, justamente por meio dos votos de Alagoas? Nesse mesmo pleito, é bom lembrar, foram eleitos o "inacusável" Paulo Maluf e o ativista do machismo Clodovil, que declarou, sem nenhum constrangimento, que só teria sua atuação parlamentar corrompida se a oferta fosse alta o suficiente. Para onde tinha ido a opinião pública vigilante, informada e intolerante aos desvios éticos dos homens públicos? E não é que o povo tenha memória curta, ou alguém em sã consciência diria que os alagoanos esqueceram que Collor foi um dia presidente do Brasil e que esteve na linha de frente de um dos maiores escândalos que esse país já vivenciou? Ora, mesmo que os nobres alagoanos quisessem, não conseguiriam tal feito, pois ali estavam os adversários do ex-presidente relembrando, a todo o momento, seu currículo político. E se denuncismo, recordações do passado e até mesmo a colaboração de parte significativa da grande mídia fossem garantias de neutralização política, Lula não teria alcançado uma vitória esmagadora sobre o picolé de chuchu. Esses exemplos são paradigmáticos para comprovar que há muito mais por trás da opinião política de massa que nossa vã Ciência Política pode explicar.Mesmo assim, insistentes, tal como Calheiros, alguns arautos do jornalismo massivo não largam o osso de se proclamarem como os detentores da opinião pública. Mesmo quando vêem suas análises pulverizadas pela decisão eleitoral e pelas sondagens de opinião, disparam anacronismos conceituais para defenderem o título que deram a si próprios. Afirmam, por esse lado, que a opinião pública nem sempre coincide com o comportamento e a escolha política da maioria da população.Essa linha de "raciocínio", que se apropria de uma visão clássica do termo, aponta que a opinião pública seria formada pelo mundo dos leitores, daqueles cidadãos que se dispõe a consumir informação e análise política sistematicamente, de forma a estar a par das posições em jogo, discuti-las e a exercerem o papel de parceiros críticos na condução da coisa pública. Como este não seria um comportamento compartilhado pela maioria da população - a qual muitas vezes formaria seu pensamento com escassa informação e sem nenhum debate mais argumentativo - então seria plausível afirmar que opinião pública e as escolhas da maioria nem sempre coincidem.Seria plausível se não fosse cínica tal posição. Pois essa mesma opinião pública é, em grande parte das vezes, fabricada tendo como matéria prima pouca informação e debate. Mal saem duas ou três declarações ou algum dossiê que qualquer burocrata mal-intencionado é capaz de forjar, para que já se tenha em mãos o que a opinião pública pensa a respeito, quando sequer houve tempo para um exame atencioso dos fatos e para um debate qualificado.Além de cínica, a utilização dessa concepção é anacrônica, inadequada aos nossos tempos. O pensador alemão Jurgen Habermas, em seu célebre livro A Mudança Estrutural da Esfera Pública, lembra que esse conceito surgiu no fim do absolutismo, quando a burguesia ascendia como classe e avançava na contestação da ordem absolutista. Esse momento "coincidiu" com o surgimento dos primeiros movimentos de industrialização e com a gênese da imprensa. Nesta, expressavam-se as vozes que se colocaram na exigência da refundação contratual do Estado, defendendo que ele fosse gerido não mais pela nobreza, que o administrava sem prestar contas a ninguém. O Estado deveria então ser considerado coisa pública (acessível a todos) e, dessa forma, ser gerido de maneira aberta e transparente aos cidadãos. Essa transparência foi traduzida na forma do princípio de publicidade, um dos fundamentos do sistema republicano até os dias de hoje. Através desse princípio, a própria esfera política deveria ser formada e sistematicamente submetida à crítica da sociedade civil para que desta emanasse a soberania popular e toda fonte de legitimidade daqueles que a representavam (os políticos eleitos). No entanto, quem eram efetivamente esses cidadãos, os que formavam o mundo dos leitores e a opinião pública? No caso, a obra de Habermas é precisa no seu levantamento histórico e estabelece que não mais de 5% da população formava esse círculo, formado eminentemente por homens e burgueses letrados. No entanto, esse círculo foi se ampliando com as lutas sociais e o processo de modernização capitalista. Como conseqüência, aquele quadro de destacada homogeneidade social foi se diversificando e se complexificando com a educação das classes trabalhadoras e a inserção da mulher na vida pública. A própria imprensa sofre modificações profundas. Ao ser anexada à indústria cultural, ela volta-se para um público cada vez maior, deixando de atender prioritariamente o interesse público para favorecer o interesse do público. Esses dois processos fazem então o mundo dos leitores uma esfera em que é cada vez menor a possibilidade de se alcançar e verificar um consenso sobre determinado assunto político. O mundo dos cidadãos e consumidores de informação política se amplia drasticamente com a democracia e a comunicação de massas. No entanto, ele sofre uma cisão entre os interessados politicamente, consumidores dedicados de fontes especializadas em informação e debate político, e aqueles (a franca maioria) que expiam preguiçosamente o mundo da política através das manchetes, do veloz e superficial noticiário.O resultado prático é que, enquanto o primeiro tipo de público dificilmente apresenta um quadro de consenso interno, pois grande parte dele é formado por diversas concepções ideológicas e partidárias cada vez mais especializadas em se digladiarem na arena produzida pelos meios de comunicação; o segundo tipo só se dispõe a prestar uma atenção mais aguçada aos assuntos políticos quando esse embate produz algo de "extraordinário", a exemplo de uma denúncia de corrupção ou uma troca de socos entre deputados e seguranças na porta do Senado. Nesse caso, não adianta colocar toda a responsabilidade na mídia por privilegiar esse tipo de cobertura, pois se ela é tão recorrente é porque existe uma real demanda por parte do público (em especial desse segundo tipo) que dá mais audiência ao escândalo que ao debate político sério e argumentativo. Mas justamente quando o escândalo surge, é aí que a tal "opinião pública" é mais frequentemente utilizada como "trunfo" retórico por parte de alguns agentes políticos, incluindo aí tanto os já citados arautos do jornalismo massivo, quanto diversos agentes pertencentes à própria esfera política.A bem verdade é que a pobre da opinião púbica, enquanto conceito de extremo valor à normatividade democrática, perdeu qualquer dignidade e respeito por parte daqueles que deviam ser os primeiros a preservá-la (a imprensa e os políticos). Cada um se arvora e fala em nome dela de acordo com sua conveniência
Numa ação para lá de sagaz, o próprio Renan Calheiros agora se utiliza da mesma tática que alguns veículos realizaram para deteriorar sua imagem pública. O senador de Alagoas, que manteve seu mandato dando claros indícios que, se condenado, despontaria como o mais novo Roberto Jefferson (aquele que cai revelando preciosos segredos de seus pares), declarou, em entrevista exclusiva ao Vermelho, que "setores levianos tentam atropelar a opinião pública e impor seus interesses".Numa arena política dominada pelo controle das aparências, o único escândalo que nem governo ou oposição se protagonizam em denunciar é que – para além dos programas partidários ou ideologias – o que mais conta na política real é a negociação operada nos bastidores, nos "acordões", bem longe do escrutínio e da visibilidade pública. Em suma, na disputa pelo controle das aparências, a opinião pública é forjada de acordo com interesses de levianos e canalhas.

Diógenes de Sousa é jornalista

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