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sexta-feira, 8 de março de 2013

HUGO CHÁVEZ, UM CAPÍTULO GENEROSO DA HISTÓRIA

 

“Os elementos que compunham o seu ser de tal forma nele se conjugavam, que a Natureza inteira poderia levantar-se e bradar ao universo: aqui está um Homem!

(Shakespeare)

Nos anos 70, despejados desde Caracas por voos do Concorde, os potentados da aristocracia venezuelana invadiam as mais caras lojas de grifes de Paris. E com inimaginável volúpia consumista compravam tudo o que encontravam pela frente. Rigorosamente tudo. Indiferentes aos preços astronômicos e ainda não saciados plenamente no autêntico fetiche a que se entregavam, pediam um segundo exemplar absolutamente igual a cada peça comprada. Um segundo relógio de ouro, um segundo bracelete de diamantes… A ironia impiedosa e certeira do semanário parisiense “Le Canard Enchainé” os batizou com o eternizado “dame dos”.

Impulsionados pela impressionante riqueza do petróleo e favorecidos por uma das mais desiguais distribuições de renda do planeta, aqueles emires sem tendas ou camelos, estavam montados nas costas de dezenas de milhões de venezuelanos famintos que assistiam o teatro da contrafação democrática: a cada quatriênio dois partidos conservadores se revezavam no Palácio de Miraflores, o COPEI e a Acción Democrática (ADECO). E nos morros que circundam Caracas, e nas periferias de Maracaibo, Cachao, Barquisimeto, Valência, Barcelona, Maturin, Ciudad Bolívar ou outras grandes cidades, a pobreza adquiria dimensões que contrastavam de forma gritante com a “Venezuela grande” vendida pela farta propaganda oficial, pela poderosa Nação integrante da OPEP e a decantada “sólida democracia” num continente então prenhe de ditaduras militares e recorrentes atentados ao Estado de Direito.

Existia por detrás do país rico e belo, do povo alegre e hospitaleiro, da democracia sem arranhões desde a queda da ditadura do general Perez Jiménez no final da década dos 50, um acordo tácito entre as elites política, econômica e social: o petróleo financiaria um simulacro de “democracia”, um mínimo de direitos sociais e um máximo de favorecimentos espúrios à classe dominante. Uma cleptocracia estabeleceu-se, renovando-se a cada quatro anos sob o manto da alternância partidária, da fortaleza constitucional e das liberdades civis. O petróleo, absolutamente única fonte de recursos do país, financiava algumas grandes obras públicas e a manutenção de uma máquina estatal caríssima. E, como medida “popular”, a gasolina barata, o único e aparente ganho democratizado também para as classes menos favorecidas.

No início dos anos 90 a panela de pressão explodiu. Carlos Andrés Perez, voltando em um segundo mandato e cumprindo à risca o figurino genocida do FMI (o mesmo que seria o breviário de FHC poucos anos após no Brasil), enfrenta impopularidade jamais vista para quem, no primeiro mandato (na década de 70) havia sido um dos mais respeitados líderes democráticos de um continente coalhado de ditaduras militares forjadas pela CIA. Desemprego, fome, condições miseráveis de habitação na periferia de Caracas, crise generalizada nos mais diversos setores da sociedade civil. E tanto Andrés Perez quanto a elite “dame dos”, muito bem representada pela implacável e tenebrosa imprensa venezuelana, sempre alinhada aos piores interesses e disposta a conspirar contra o país e o povo, absolutamente indiferentes ao cenário de graves consequências que se apresentava no horizonte.

Em meio à balbúrdia de um país riquíssimo condenado à hecatombe, surge o jovem e corajoso coronel paraquedista, filho de um professor e de uma dona-de-casa, natural de Barinas, província sem maior expressão política ou econômica, mas querido por seus companheiros de farda e famoso pelo brilho de seu curriculum no Colégio Militar. O levante que Hugo Chávez e algumas poucas dezenas de outros jovens oficiais tentam contra o governo desmoralizado de Andrés Perez fracassa, levando-o a dois anos de prisão. Ainda na cadeia, antes de ser anistiado, o desconhecido revoltoso aparecia em disparado primeiro lugar em todas as pesquisas para a presidência da República!

O restante da história já conhecemos. A epopeia de sua chegada ao poder no bojo de uma votação consagradora, a fundação da República Bolivariana, o sonho generoso de um continente unido e de uma “Pátria Grande” como queria Simon Bolívar séculos atrás, libertando países e povos, o golpe fascista contra Chávez em 2002, sua prisão e volta ao poder nos braços do povo em menos de 48 horas.

Há histórias e feitos que marcaram o tempo desse homem invulgar, profundamente corajoso e de inteligência espantosa. Sobreviverão a ele e a todos nós. Alguns foram omitidos pela imprensa brasileira, que o combateu com a ferocidade conhecida que a nós, petistas e aliados dos presidentes Lula e Dilma, também o faz. Um deles: os maiores navios da PDVSA, a poderosa estatal petroleira local, eram tradicionalmente batizados com os nomes das venezuelanas que venceram o concurso de Miss Universo (Irene Saenz, Maritza Sayalero, e outras). Chávez mudou essa ridicularia, escolhendo nomes de mulheres do povo, operárias, camponesas, ou simples e anônimas mães-de-família, para substituírem tais beldades. Uma delas, “Negra” Hipólita, justamente a que batiza o maior e mais moderno dos superpetroleiros, foi escrava da família de Bolívar, o amamentou e a ela o Libertador das Américas devotava respeito filial e carinho absoluto. Outro fato omitido aos brasileiros: o bilionário militante de extrema-direita Juan Carlos Escotet, íntimo amigo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e dono do Banesco (um dos maiores bancos venezuelanos), tornou-se um contumaz “plantador” de informações mentirosas contra Chávez e a política econômica de seu governo na imprensa local. Ao vivo, via satélite e em rede nacional de TV, Chávez o chamou em seu próprio celular, calmamente deu-lhe explicações sobre as questões econômicas e lhe disse “meu caro, se você não der conta de tocar o seu banco, me avise, ok? Nós o levaremos adiante”.

Chávez morreu. Sua herança não está nos livros dos cartórios ou no bolso de seus filhos. Ela está na vida de milhões de venezuelanos. Metade deles era formada por pobres. Essa cifra maldita caiu em quase 50% segundo a ONU. Eles não tinham casa, escola ou saúde. Agora tem. Eles eram massa de manobra, vista do alto do palanque, em época eleitoral por candidatos da elite branca, racista, aristocrática. Chávez, um deles (filho do povo, moreno, sem sobrenome importante) chegou lá: no poder e no coração das massas.

Os “dame dos” odeiam Chávez mais ainda, para além da morte: já há estação de metrô nos morros de Caracas, o equivalente a nossas favelas. Mas, hoje, são menos favelas. E a herança de Chávez está na barriga de milhões de crianças de seu país que dormirão sem fome na noite em que ele já descansará sob a terra. A herança do coronel atrevido está em seu fabuloso desafio à impiedosa oligarquia caraqueña, cassando a concessão da RCTV, do aristocrático Dr. Marcel Granier e pondo fim ao Banco Federal, do biliardário Nélson Mezerhane (ambos acostumados a darem ordens aos presidentes que antecederam Chavez no Palácio de Miraflores).

Chávez viverá na memória dos que o admiram e foram por ele amados. Milhões de venezuelanos nele votaram em uma eleição dramática, guardando um autêntico segredo mútuo, de polichinelo, sabendo que ele dificilmente sobreviveria para cumprir o mandato, talvez sequer tomar posse. Mas, deram-lhe o voto como quem cumpre um dever para com sua própria consciência. Os venezuelanos votaram em um Chávez doente, depauperado, que mal caminhava, entronizado no alto de um caminhão avermelhado, não podendo fazer um contraponto efetivo ao jovenzinho rico, reacionário e oligarca, escolhido para enfrenta-lo e perder a peso de ouro. Mas é que Chávez sabia e seu povo também sabia de uma verdade absoluta. Ao votarem no líder já moribundo, votavam também na história que juntos protagonizaram. Era uma história só deles, dispensando a intermediação antipática e nefasta de marqueteiros, chefetes, partidos, dinheiro, governos. Era Chávez e o povo. Só os dois. Num grande, monumental e definitivo encon

tro. O último.

O câncer conseguiu o que os inimigos de Hugo Chávez tentaram em vão. Mas as obras de Cárdenas, de Bolívar, de Sucre, de San Martin, de Allende, de Torrijos, de José Martí, de Getúlio, de Artigas, de Haya de La Torre, de Perón, de Evita, se foram com eles? Seus legados, ensinamentos, doutrinas e pensamentos sucumbiram com a extinção física de tais estadistas? Não, mil vezes não.

A Hugo Rafael Chávez Frias não o derrotaram no voto e nem nas idéias. Alegram-se agora, como abutres, por seu determinismo biológico. Aos que não derrotaram o grande líder da Venezuela, ao que mudou os rumos da história de seu povo e de seu país, sobrou a mixórdia das notinhas maldosas, dos trocadilhos cretinos, dos comentários irônicos, dos risinhos mal disfarçados nos enfadonhos painéis das TVs a cabo, onde especialistas mais que desconhecidos, saídos das catacumbas do nada, preveem o fim dos tempos, a vitória dos que sempre perdem, brigam tenazmente contra a verdade dos fatos, abrem vírgulas sem consegui-las fechar no tempo certo, e – fazendo muito sofrer o vernáculo – mal conseguem apontar no mapa-mundi a localização exata da Venezuela, o que, todavia, não os impede de já prognosticar – entre excitados e ridículos – o final do chavismo. Como o fazem desde antes de se empanturrarem de botox…

Hugo Chávez já não pertence ao mundo dos vivos. Aos seus familiares, partidários ou amigos. Agora ele já é lenda e mito. Pertence à posteridade, com suas luzes e sombras. Pertence à nobre estirpe dos que escreveram a história de seu tempo, com sua alegria ‘criolla’, com sua ‘alma llanera’, com a imensa audácia de sonhar seu país rico com um povo também rico, com sua surpreendente força em tentar reviver o sonho generoso do seu tão admirado libertador Bolívar.

Que desafio estupendo o de continuar a sonhar os sonhos revolucionários de um homem que os transformava em realidade. Que orgulho imenso o de ter sido seu contemporâneo.

(*) Delúbio Soares é professor

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