Bruno Peron
Há tempos, noto a aversão que o brasileiro tem de ser corrigido. Por vezes, as retificações se fazem na forma de escárnio ou piada. Assim seguimos falando um português cheio de vícios de linguagem (“a nível de”, “estarei apresentando”) e incorreções gramaticais. Mais grave é nossa teimosia frente a mudanças na interação com os outros e à observância de direitos e deveres, portanto exemplos externos ao âmbito das letras.
A educação está em todos os planos de governo e na ponta da língua de políticos, mas se trancafia num baú de esperanças duradouras. Quando se reanimam os otimismos, a mesmice reitera-se nas políticas que esquecem a educação dos pirralhos enquanto elas privilegiam a formação de quem já é bem educado e já tem boa formação, mandando-os ao exterior para que voltem ainda melhores. Assim este segundo grupo (merecedor de educação como os pirralhos também o são) retorna políglota e enciclopédico a educar jovens a quem se presenteia o ingresso às universidades como um privilégio.
O impulso deste texto, a despeito do tributo educacional, é refletir sobre uma contradição na sociedade brasileira: por que protestamos tão veementemente a favor de mudanças exógenas enquanto o caráter do brasileiro é endogenamente avesso a transformações? Queremos nadar nas águas límpidas da prosperidade, mas pouco fazemos para que o micromundo à nossa volta fique melhor e as pessoas se unam no conforto coletivo.
Temos ambições vãs de rezar por toda a impenetrável Via Láctea em vez de pedir pelo familiar que não está bem ou pelo colega de trabalho com quem temos atritos. O desafio está do nosso lado. É aquela história de ter dez projetos, mas não conseguir realizar sequer um. É preciso, portanto, juntar as peças de nossas vidas privada (papel familiar) e pública (função cidadã) e avaliar o que está dentro do alcance e da vontade.
Os protestos que emergem no Brasil alçam a multiplicidade de vozes que, ao mesmo tempo que têm demandas diferentes, confirmam nossa semelhança como brasileiros. Algo temos em comum por nascer e crescer no Brasil. Este país nasceu moderno a partir de pais gananciosos, que buscavam riqueza fácil a custo de genocídio e escravidão, mas deixaram filhos sedentos de luta. Não mudemos esta disposição fundadora do rebento.
A busca desenfreada pela preservação de tradições não esconde que, no Brasil, emerge uma civilização original, que superou de longe as previsões dos pais arrogantes, desertores, exploradores e preconceituosos. Dá-se, porém, atenção desfocada ao âmbito do patrimônio – desconsiderando-se suas novas concepções (sobretudo relacionadas a bens intangíveis, como os costumes) – através da proteção de tradições dubiamente brasileiras (por exemplo, casas luxuosas construídas com material de origem europeia) em vez dos que viviam “sem eira nem beira” nas margens do limiar de nossa modernidade.
Por isso, a busca sedenta pelas tradições (arquitetônicas, linguísticas, políticas, etc.) tem, por um lado, o mérito de resguardar a memória das nossas identidades, mas, por outro, ela propaga nossa tradição de misoneísmo (ou seja, aversão à novidade e à transformação). Uma vez que muitas destas tradições referem-se ao uso de palavras arcaicas e a edifícios que abrigavam membros das classes nobres, deixamos de coser a novidade nas entranhas da sociedade escravista, autoritária e hierárquica que aqui se desdobrou.
Portanto, há algo de capcioso na preservação de tradições (aspectos hierárquicos de nossa cultura política, por exemplo) que se incompatibilizam com práticas e hábitos modernos com que tanto contamos na transformação do Brasil. Toda sociedade evolui oferecendo e recebendo na formação de suas identidades. É desta forma que a alegria, a criatividade, a energia e a solidariedade emanam do brasileiro ao passo que buscamos, noutras sociedades, modelos de como viver em harmonia nas cidades sem quebrar telefones públicos, estourar caixas eletrônicos ou queimar ônibus.
Sabemos que gostos e interesses mudam, pois não somos múmias nem objetos de argila. Não é preciso olhar muito atrás no tempo para notar que muito do que fazíamos era pueril demais para que se repita hoje. Cedo ou tarde, nossa energia interna a favor de mudanças será imprescindível para a locomotiva do país. É preciso valorizar-se, ainda que nossa prece evidentemente não mude o mundo. Em vez de reproduzir nossa tradição de misoneísmo, vale a proposta de que o misoneísmo vire uma tradição definhada.
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