Bruno Peron
Os usuários de crack sofrem de um efeito colateral de um modelo de sociedade que não deu certo alhures, mas que se aplica fielmente no Brasil. Alguns dos males da América emanam da podridão valorativa da Europa. A competitividade, a decepção e o sentimento de frustração são alguns de seus sintomas. Os custos sociais da incompatibilidade deste transplante medram e arrolam-se na conta de todo brasileiro. Uma de suas consequências é a fuga de uma situação insuportável; os narcóticos usam-se como remédio para as dores psíquicas da marginalização.
No entanto, o problema das sociedades capitalistas modernas nunca está em seu bojo, segundo seus promotores; ele está noutro lugar. Assim argumentam países de alto consumo e baixa produção de narcóticos. Desta maneira, o uso de narcóticos não é a passagem do terror ao bem-estar, mas certifica o rebaixamento da ordem à contravenção. A atenção que se tem dado aos usuários de crack é ilustrativa desta tensão social nas cidades brasileiras.
O programa "intersetorial" e "interministerial" Crack, É Possível Vencer do Governo Federal oferece bases móveis equipadas com câmeras de monitoramento, que capturam imagens a centenas de metros de distância, e acessórios de repressão a cidades de porte médio e grande. Embora o programa tenha sido criado em dezembro de 2011, as primeiras cidades que receberam as bases móveis são Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo em maio de 2013.
Muitas outras cidades de vários estados brasileiros aderiram ao programa Crack, É Possível Vencer, enquanto outras demonstraram interesse em implantá-lo. Por ter sido criado como "intersetorial", o programa também visa a tomar medidas preventivas, de cuidados salutares e de assistência social aos usuários de crack. Seus três eixos são: autoridade, prevenção e saúde.
Primeiramente, localiza-se o território dos usuários de crack nos locais mais propícios a estas atividades (praças, ruas mal iluminadas, redutos de pontes), mas também em escolas e outros lugares que se supunham isentos do narcotráfico e do narcoconsumo. Outro fator relevante a ter em consideração é que o perfil dos usuários de crack costuma ser diferente do daqueles que usam narcóticos mais caros e menos acessíveis. Os usuários destes nem sempre são vítimas de marginalização social; muitas vezes, são os provocadores indiretos da marginalização.
A política federal de combate ao crack no Brasil insere-se dentro do quadro mais amplo do debate sobre o tráfico e o uso internacionais de narcóticos, de qual deve ser o método mais eficaz para reduzir sua circulação e seu consumo, e de como tratar os traficantes e os viciados. Nalguns países, discute-se a legalização do consumo de narcóticos devido à mudança de perspectiva sobre o tratamento dos viciados: eram vistos como criminosos; hoje são vistos como doentes.
Algo diferente sucede com a visão repressiva com a qual gestores governamentais fazem uma relação entre uso do crack e segurança pública. No entanto, as posições de burocratas e políticos dividem-se quanto ao tratamento do usuário de narcóticos como criminoso ou enfermo. Regina Miki - Secretária Nacional de Segurança Pública - bem assegurou, em entrevista ao Portal Brasil, que "a pior doença que pode existir é a criminalização". Esta visão demonstra a maturidade de ideias que vêm da cúpula governamental e visam à resolução do problema. E de fato me impressionei com a lucidez como Regina Miki conhece a carência dos viciados. Ela e alguns outros gestores públicos sensibilizam-se com o contexto em que vive o viciado.
A árvore cresce torta enquanto não se trata a raiz enferma. Medidas repressivas não corrigem as deficiências sociais. A maioria dos usuários de crack sentem o fardo da marginalização social, a que se sujeitaram por deficiências educativas ou por negligência das oportunidades que lhes apareceram na vida. Se não for o crack, será outro narcótico. O programa Crack, É Possível Vencer será bem sucedido se observar, com cautela, as necessidades sociais dos viciados.
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