Os povos que não buscam conhecer, interpretar e esclarecer os fatos ocorridos em sua história estão sujeitos à repeti-los indefinidamente. Não buscar a verdade e o esclarecimento dos processos políticos autoritários, das ditaduras genocidas, dos regimes de exceção é um cometer um tremendo erro contra as futuras gerações.
A pequena e sofrida Guatemala ministrou uma lição ao mundo quando sentou o general Efrain Rios Montt, ex-ditador, no banco dos réus e ao responsabilizá-lo pelo genocídio que marcou sua história recente. Tribos indígenas inteiras, incluindo idosos e crianças, foram dizimadas com requintes de sadismo, adversários políticos desapareceram sem deixar pistas, os mortos e desaparecidos em solo guatemalteco se contam aos milhares.
O Chile, após a soturna ditadura do general Augusto Pinochet, com números assustadores de mortos e desaparecidos além dos relatos de brutais torturas, ao reencontrar-se com a democracia no início dos anos 90, buscou sua verdade histórica. E não foi um processo revanchista. Longe disso. Sob o comando do presidente Patrício Aylwin, moderado líder democrata-cristão, os chilenos preferiram a verdade, por mais dura e chocante, ao exercício bizarro do mero desconhecimento, da fuga ao que realmente sofreram, evitaram uma espécie ridícula de “autismo histórico”. Não se abriram feridas, mas se conheceram todas elas em sua profundidade e dor.
Na Argentina os presidentes Alfonsin e Kirchner promoveram a responsabilização dos que sequestraram, torturaram e mataram um número de mulheres e homens que pode chegar à casa dos mais de 30 mil compatriotas. Em momento algum isso foi considerado revanchismo ou perseguição. Os argentinos sofreram nos anos 70 e 80 o terrível “terrorismo de estado”, onde o aparelho repressivo policial e militar foi colocado à serviço de uma autêntica carnificina, onde nada e ninguém foi poupado. Morto recentemente, o ditador Videla é rejeitado até por sua cidade natal, Mercedes, que não quer servir de última morada ao seu corpo, tamanho é o trauma e tanta é a dor que ainda existe no coração de seu povo. Uma comissão de notáveis, presidida pelo grande escritor Ernesto Sábato, comandou a apuração dos crimes da ditadura militar e produziu um relatório pormenorizado, peça emblemática e terrível da histórica daquela Nação-irmã, cujo título serve de divisa ao sentimento nacional: “Nunca Más!”.
Os uruguaios, por ampla maioria de seu parlamento, soterraram qualquer tentativa de perdão aos que torturaram e mataram, aos que traíram a Pátria e golpearam a Constituição, e com apoio total da cidadania os governos de Tabaré Vasquez e Pepe Mujica (um ex-preso político torturado) apuraram os fatos e promoveram as responsabilidades. Há um consenso lá, entre nossos irmãos uruguaios, como em todo o mundo civilizado, de que não há perdão ou contemporização possível para com os que atravessaram a tênue fronteira que separa a ação policial da violência patrocinada pelo Estado.
Nos anos 70, o Brasil esteve unido à Argentina, Chile, Paraguai, Uruguai e Bolívia numa multinacional do terror, a “Operação Condor”. Importantes líderes políticos, destacados artistas e intelectuais, estudantes e sindicalistas, homens e mulheres, indiscriminadamente e da forma mais brutal, tiveram suas vidas ceifadas em ações coordenadas pelos aparatos repressivos das ditaduras que reinavam no cone sul. Dos arquivos oficiais brota farta documentação probatória dessa fase medonha. Faz poucos dias veio à público a correspondência trocada entre os generais Geisel e Videla, ditadores-de-plantão no auge da vigência da Condor. Dias após o sangrento golpe de 73, quando o Estádio Nacional em Santiago do Chile foi convertido em campo de concentração e centro de torturas, o delegado Sérgio Fleury foi despachado em aeronave da FAB para ensinar suas técnicas de interrogatório e suplício aos liderados de Pinochet.
No Brasil não sofremos menos e nem mais que nossos irmãos latino-americanos. Não há uma medida para a dor que os povos sentem quando são vilipendiados pelas ditaduras e regimes de opressão. Suas histórias jamais apagarão as marcas do opróbio, da desdita, da humilhação extrema, da impotência diante do medo. E conosco não foi diferente.
Há quem diga que não passamos por uma ditadura, mas por uma “ditabranda”. E nossos mortos? E os desaparecidos? E o “suicídio” do jornalista Vladmir Herzog ou o sequestro seguido de tortura, morte e desaparecimento do corpo do ex-deputado Rubens Paiva? E a morte da corajosa Zuzu Angel, que buscou até o último dia de sua vida o esclarecimento do que fizeram com seu filho? E as suspeitas crescentes de que o inesquecível presidente Jango teria sido vítima de envenenamento por agentes da Operação Condor? E os militantes políticos, líderes estudantis e sindicais, ou mesmo simples familiares que lutavam pelo esclarecimento do destino de entes queridos e também acabaram desaparecendo? E a brutal repressão aos camponeses na região do Araguaia, torturados para “confessarem” sobre o que sequer sabiam? E os que se foram vítimas do tormento e da dor na “Casa da Morte” em Petrópolis, em sessões de tortura assistidas por um monstruoso médico?
A Comissão da Verdade apura nada mais do que a verdade histórica. E não há que se ter medo dela. Não se pode desconhecê-la ou transformá-la em chavões televisivos que depois serão apagados na hora definitiva. Aí, então, ela nada mais será do que uma farsa grotesca.
Os países que conseguiram sair adiante, ressurgirem no cenário internacional como Nações poderosas, democráticas e fortalecidas em sua estrutura social, não se olvidaram de seu passado recente, dos sofrimentos pelos quais passou o seu povo e que marcaram sua vida de forma indelével. Lamentavelmente, a tintura foi o sangue.
A personificação, a “fulanização”, o apontar o nome de um indivíduo ou de outro, em verdade, não configuram perseguição política ou revanchismo ideológico. Trata-se, apenas e tão somente, de conhecer a verdade e promover responsabilidades históricas que o país e o próprio processo de consolidação democrática exigem. É a tarefa premente e irrenunciável de recordar a todos uma imposição histórica: não há perdão, esquecimento, contemporização ou anistia para práticas hediondas, para crimes de lesa-humanidade.
(*) Delúbio Soares é professor
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