Bruno Peron
Ouvi de um compatriota: “Você é o único brasileiro que conheço na Inglaterra que só tem passaporte brasileiro.” Os demais têm cidadania italiana, espanhola, portuguesa, e outras. Uma breve conversa sobre identidade seguiu este comentário.
Ele me revelou que, depois de morar mais de dez anos na Europa, havia tentado a vida no Brasil, onde recentemente ficou sete meses, mas a Lei de Gérson (assim mesmo falou) impediu-o de permanecer. Não se acostumou com a ubiquidade da corrupção, que está tão institucionalizada e que tanto espanta aqueles que não a aceitam de maneira alguma. Sendo assim, fez valer seu passaporte italiano.
O que mais provoca curiosidade é o modo como os brasileiros sempre conseguem o que querem, ainda que por vezes tenham que desculpar-se, fingir, mentir, omitir, trapacear e passar por cima do cadáver. Temos experiências recentes desde o sumiço do pedreiro Amarildo, que foi levado a depor numa Unidade de Polícia Pacificadora no Rio de Janeiro e depois dali ninguém mais o viu, até aqueles que escarafuncham suas árvores genealógicas a fim de descobrir um tataravô italiano, espanhol ou português. Com elas, tiram cidadania e passaporte europeus, passam pela Migração através da fila rápida e bebem da fonte civilizatória.
Há diferenças entre a Lei de Gérson e o jeitinho brasileiro, porém. Aquela refere-se ao comportamento de tirar vantagens em tudo que puder, enquanto este é uma versão tupinica da máxima maquiaveliana de que “os fins justificam os meios”. Como uma de minhas linhas argumentativas é que o Brasil é o lugar que hospeda o melhor e o pior do mundo (talvez por disputar o posto de “coração do mundo” como pregam os espíritas), nossa maior preocupação é o tutorial de ilusões.
Através deste tutorial de ilusões, indivíduos que abusam da legitimidade de ensinar raramente fazem mais que reproduzir ideologias colonialistas e obsoletas em sala de aula enquanto lutam somente por aumento de seus salários. O tutorial não acaba aqui. A politização das juventudes tem sido feita com a defenestração de seus ideais progressistas para que, no lugar, discutam como conquistar o poder e segurá-lo como Góllum ansia pelo anel dourado no filme O Senhor dos Anéis.
A discussão sobre identidades no Brasil desperta-me um certo sentimento idealista, mas jamais utópico. Sei que estes ideais não têm o mesmo alcance que as frequências da televisão, que vibram em lugares remotos do país. Quer dizer, existe algo em comum entre um morador no interior da Amazônia e outro no subúrbio de São Paulo. E não se trata somente de um nexo de idioma. A identidade nacional deve muito à expansão dos meios de comunicação, apesar dos pesares.
A televisão sugere que o país está em chamas e que a violência é infrene, o que não corresponde à realidade. O que mais influi neste processo das identidades é o questionamento sobre quem tem cumprido papel de professor (ainda que não o seja), e o que este tem ensinado para manter os brasileiros em coesão identitária. O pequeno empreendedor brasileiro tem pouco incentivo para começar seu negócio e dar-lhe continuidade, enquanto o Estado aparenta ser o único que acredita no cidadão devido à generosidade das bolsas e benefícios e aos concursos como sonho de estabilidade dos jovens brasileiros recém-egressados da universidade.
Outro lugar onde se aprende a ter ilusões é o cárcere. Nele há pouca perspectiva de recuperação daqueles que se condenaram porque não aprendem a devolver à sociedade aquilo que tiraram dela; poderiam obrigar-se a trabalhos comunitários em vez de apinhar-se atrás das grades. A destruição de patrimônio público (a queima de ônibus municipais e a depredação de telefones públicos, caixas eletrônicos e monumentos) através de vandalismo tampouco traz bom augúrio.
Devemos indagar sobre a validez de nossas referências educativas. A forma como nos educamos resulta frequentemente da interação com a tecnologia e com uma realidade que se perfila de outro modo. Para muitos, um computador tem substituído a relação com a escola, a família e a religião. Há o risco, portanto, de que folheemos um tutorial de ilusões que reduza as chances de tornar-nos bons cidadãos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário