Em 33 anos de cobertura e acompanhamento das atividades do Congresso eu pensava já ter visto acontecer tudo o que é possível na política. Na manhã desta quarta-feira, entretanto, o espanto me pegou no trânsito pelas ondas do rádio. A notícia de que o senador Delcídio Amaral fora preso pouco antes pela Operação Lava Jato foi como o aviso da morte súbita de alguém conhecido. Esta morte política repentina, singular e inesperada seria muito lamentada à noite na sessão do Senado que lembrava um velório.
Talvez não um velório, mas uma cerimônia de imolação, em que quase todos lamentaram ter que votar pela manutenção de sua prisão determinada pelo Supremo Tribunal Federal. Quem haveria de peitar o STF e a opinião pública em seus tempos de cólera?
Quando ouvi a notícia pelo rádio rememorei o artigo 53. Devia estar havendo uma violação da imunidade e eu precisava escrever isso. Sem lap-top no carro, parei numa lan-house mas os online já informavam os motivos e fundamentos da primeira prisão de um senador no exercício do mandato.
O ministro Teori acolhera os argumentos da Procuradoria Geral da República de que a situação de Delcídio se enquadrava na exceção constitucional que permite a prisão sem condenação prévia, o flagrante delito pelo crime inafiançável de integrar organização criminosa. Em uma gravação ele tramava a fuga de Nestor Cerveró e oferecia recompensa a ser paga pelo banqueiro André Esteves para que não fizesse delação premiada. O post que eu escreveria caiu. Estava diante de uma situação singular, de algo nunca antes acontecido, de uma interpretação nova do artigo 53. Precisava ouvir pessoas, precisava ir ao Senado. Mais tarde li juristas questionando a organização criminosa a que Delcídio pertenceria.
No Senado os senadores compartilhavam seu espanto. Alguns diziam sentir-se também como eu diante da notícia de uma morte súbita. O dia seria longo. O STF teria até a manhã desta quinta-feira para enviar os autos ao Senado mas isso seria antecipado. O presidente Renan Calheiros queria cumprir logo o ritual também previsto pelo artigo 53 em que Senado homologaria a prisão ou a desautorizaria. Apesar da perplexidade geral estava claro que ninguém ousaria peitar o STF desautorizando a prisão. Talvez mesmo se o voto fosse secreto.
A Redetv me convoca embora não seja meu dia de comentário e eu quero comentar este fato insólito. Vou em casa me arrumar e escrevo um post para o 247 prevendo o que virá: “E o Senado terá que condenar Delcídio”. Volto ao Senado, a sessão está começando. Começa o velório. Semblantes compungidos, sobriedade fúnebre, vozes comedidas. Os petistas são os mais acabrunhados mas não são os únicos. Humberto Costa e Paulo Rocha ainda estão atônitos. José Serra diz no café que ninguém na Casa gostaria de estar vivendo aquilo. Romero Jucá fala em tragédia. O trato fácil, a gentileza, a capacidade de dialogar e outros atributos do líder do Governo caído em desgraça são lembrados. Ainda ontem, recorda Otho Alencar, ele prometeu aos três senadores da Bahia que protestavam (o próprio Otho mais Walter Pinheiro e Lídice da Mata) contra a interrupção de uma obra no estado que faria gestões junto ao Governo para resolver o problema. Como nos velórios, o consumo de água e café é grande.
O palco se abre. Renan Calheiros entra no plenário um tanto esbaforido, depois da reunião com os líderes, e abre a sessão. Está visivelmente tenso. Ao final, ele será um dos poucos a ganhar com os funerais de Delcídio, pela correção com que conduziu os trabalhos. Foi logo cobrado a explicar como seria a votação mas evitou externar sua posição. O líder tucano Cássio Cunha Lima fez a primeira questão de ordem em defesa do voto aberto, comparando a decisão a uma cassação. Por analogia, voto aberto. Na mesma linha falaram depois os senadores Randolfe e Reguffe. Jader Barbalho abriu a divergência com um discurso corajoso em defesa do voto fechado. Para homenagear o Supremo mantendo a prisão, disse ele, o Senado não tinha que se humilhar rasgando seu regimento, que prevê voto secreto. Em maior número, entretanto, falaram os defensores do voto aberto. Alegando a prevalência da Constituição sobre o regimento. O artigo 53 diz que a decisão será pela maioria dos integrantes da Casa do parlamentar preso, logo por maioria absoluta de 41 votos. Não se refere à forma do voto. Na redação original, depois reformada por uma emenda, o artigo falava em voto secreto. Entendeu a maioria que tal omissão significa que o voto secreto só se aplica hoje às exceções previstas, como a apreciação de votos e a aprovação de nomes de autoridades como ministros de tribunais e embaixadores.
Alguns pedem pressa no encerramento do debate mas Renan dá corda aos oradores. Estaria esperando que o STF decidisse sobre o mandado de segurança da oposição pedindo garantia do voto aberto. Do STF vêm sinais de que tal decisão ficará para o dia seguinte e Renan faz então seu melhor momento. Externa sua posição a favor do voto fechado mas transfere a decisão para o plenário, abdicando da deliberação monocrática. Mediu a correlação e forças e viu que não poderia impor o voto secreto. O plenário suspirou aliviado. Muitos louvariam seu espírito democrático.
Iniciada a votação, entram em cena as carpideiras. Cada voto a favor da manutenção da prisão foi precedido de lamentações pelo inevitável, de louvores à pessoa de Delcídio e do reconhecimento de que ele incorreu num crime. No final, 59 votos a favor do STF, 13 pela contestação da prisão. Um silêncio constrangido domina o plenário por alguns segundos depois que Renan anuncia o resultado. Os senadores vão saindo sorumbáticos para o salão azul. Acabavam de enterrar um colega. “Tudo isso é muito doloroso, confesso que estou triste”, dizia o tucano Tasso Jereissati. O Senado sabe que saiu menor diante de um Judiciário que cada vez mais dá as cartas. Pior ainda seria se tivessem esperado por uma ordem do STF para que votassem aberto. A busca da Polícia Federal no gabinete de Delcídio foi humilhante. Na ditadura o Congresso foi fechado e foi cercado mas não me lembro de invasões de gabinetes. Cercado por jornalistas Renan avalia que o plenário, com a decisão, alterou o regimento. Falta agora colocar no papel.
Os funerais políticos de Delcídio foram mais um sinal dos tempos. Vai ficando para trás a prevalência das relações pessoais sobre as institucionais. Disso tudo deve nascer uma nova cultura política.
Sua ausência como líder do governo terá consequências para o governo Dilma. Ele vinha recompondo a maioria, aprovando tudo o que era importante, em parte graças a seu trânsito e a suas relações pessoais, olha elas aí. Era o relator do projeto de repatrição dos recursos depositados no exterior e não declarados. Faltando duas semanas para o ano legislativo acabar, o novo líder terá que suar muito para aprovar as tantas matérias ainda pendentes, inclusive a redução da meta do superávit, que se não for votada, deixará o governo juridicamente vulnerável.
O PT podia ter passado sem aquela nota declarando não dever solidariedade ao senador. Antecipou-se ao próprio Senado. Renan corretamente considerou-a intempestiva e oportunista. Os senadores petistas também a repudiaram. Numa noite de velório, soou como desfeita dos parentes ao morto.
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