Vladimir Safatle
Carta Capital
A chamada Primavera Árabe foi, para muitos, o início de um movimento de reafirmação da força de transformação do campo político. Ela teria sido também a prova de que as sociedades árabes não estavam imersas em alguma forma de arcaísmo teológico antimodernizador que se manifestaria através de tendências latentes de constituição de sociedades teocráticas. Como se eles estivessem fadados a viver entre regimes laicos ditatoriais e sociedades que usam a religião como motor cego de mobilização popular.
No entanto, a análise da situação atual do mundo árabe pode parecer desoladora. Por enquanto, quatro países tiveram mudanças de regime: Tunísia, Líbia, Egito e Iêmen. Um quinto está em via de ver a sua ditadura cair, a Síria. Outro que teve grandes manifestações por mudanças, o Bahrein, está cirurgicamente longe dos noticiários internacionais.
Aliado importante do mundo ocidental, sede de uma base militar dos EUA, o Bahrein foi invadido por tropas sauditas a fim de garantir a perpetuação de uma monarquia absoluta. Nada disso causou indignação na opinião pública internacional com sua sensibilidade democrática seletiva e sua tendência a cobrar respeito aos direitos humanos apenas dos inimigos.
Outros países que tiveram manifestações, como o Marrocos, parecem agora imunes a revoltas. Da mesma forma, a pior ditadura teocrática do mundo, aquela que faz o Irã parecer uma democracia escandinava, continua firme com o apoio irrestrito dos defensores ocidentais da democracia. Na verdade, a Arábia Saudita continua sendo um foco de desestabilização de todo movimento democrático na região, já que financia generosamente movimentos salafitas pelo mundo.
Se levarmos tudo isso em conta e olharmos para os países onde a Primavera Árabe desabrochou, teremos a impressão de que o mundo árabe, de fato, tem uma tendência subterrânea à regressão. Na Tunísia, a queda do governo Ben Ali colocou no poder um partido islâmico, o Ennahda. Setores da sociedade tunisiana lutam diariamente para o país não regredir em matéria de laicidade e liberdade de expressão. Grupos salafistas invadem exposições de artes para destruir obras que julgam ofensivas aos preceitos islâmicos, além de paralisar universidades por exigir o direito de mulheres frequentarem aulas de burqa.
No Egito, a Irmandade Muçulmana lidera o governo e a frente que ainda luta por tirar os militares do poder. Embora já tenha dito não querer islamizar a sociedade egípcia, é fato que isso não seria necessário: o Egito já é um país onde é possível processar um ator por ele ter representado um papel ofensivo ao Islã, onde cristãos não podem ser governadores de estado ou reitores de universidade e onde tomar uma cerveja em um bar não é exatamente algo simples.
Tal situação nos leva a duas reflexões. Primeira, o que vimos em 2011 foi um ensaio geral. Os grupos que deram início à sequência da Primavera Árabe não eram islâmicos, mas jovens diplomados desempregados e sindicalistas. No Egito, por exemplo, foi o Movimento 6 de abril, composto por jovens das mais variadas tendências, a iniciar o processo de ocupação da Praça Tahir. Esses grupos ainda não encontraram uma forma institucional que os fortaleça. Eles não têm unidade. Na ausência disto, o grupo mais organizado e disciplinado é, no caso, os muçulmanos, que conduz o processo.
A história conhece vários exemplos de revoluções traídas. Tais exemplos não podem ser lidos como meros fracassos, são movimentos duros de compreensão de limites de ação política. A espontaneidade impressionante da Primavera Árabe demonstrou sua força e sua fraqueza. Sua força fica clara quando a revolução ganha. Sua fraqueza aparece quando os embates em torno do saldo da revolução entram em cena.
Por outro lado, é inegável que a força dos movimentos muçulmanos vem principalmente do sentimento de humilhação que os povos árabes nutrem em relação ao Ocidente. Há um ressentimento profundo vindo de promessas de modernização não cumpridas, continuidade de sistemas de influência colonial e xenofobia internacional contra os árabes, muitas vezes tratados implicitamente como “povo terrorista”. Os muçulmanos sabem instrumentalizar bem tal afeto, dando a esses povos um sentimento de orgulho.
A única maneira de quebrar tal força viria da capacidade de setores dos países árabes em encontrar, dentro de sua própria tradição, correntes que constituam promessas de formas de vida distantes dos preceitos religiosos do islamismo conservador. Isso passa por saber explorar de maneira mais radical o caráter liberal de várias tradições do nacionalismo árabe. A Primavera Árabe aparece como a abertura de uma sequência imprevisível. E a maneira mais certa de garantir o pior é deixando-se tragar pelo imediatismo do derrotismo.
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