Por Alex Solnik, do 247 - Coordenador nacional do Movimento
dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que congrega 40 mil famílias em onze estados
brasileiros, Guilherme Boulos prevê, nessa entrevista exclusiva ao 247, um 2017
de conflitos no Brasil, mas sobretudo na maior cidade do país, onde o movimento
é mais robusto.
"São Paulo vai virar uma praça de guerra", diz ele, antevendo que o novo
prefeito irá usar a força para reprimir a luta pela moradia. "Doria disse que
vai acabar com as ocupações. É próprio de alguém que nunca saiu do Jardim
Europa. Ninguém pede licença ao prefeito para fazer ocupação".
Boulos classifica o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, como "um
sujeito de índole autoritária", sempre "à procura de um inimigo interno". Sergio
Moro "não é uma referência de Justiça" e " tem mentalidade de justiceiro". "Para
ele", diz Boulos, "vale qualquer coisa, até passar por cima da constituição,
para que ele possa pegar quem ele quer pegar".
E define a missão do general Etchegoyen no governo Temer: "Ele tem o papel de
infiltrar gente, como fez com aquele capitão do Exército aqui em São Paulo nos
movimentos sociais, com o objetivo de monitorar os movimentos, preparar a
escalada repressiva... um cenário preocupante".
O MTST irá às ruas se Lula for preso? "Uma prisão arbitrária do Lula não é um
ataque apenas ao Lula. É uma declaração de guerra. Evidente que vai gerar
reações".
Há quanto tempo você mora na periferia?
Eu moro na periferia de São Paulo há quinze anos, desde que eu entrei no
MTST.
É perigoso morar lá?
Olha, não acho. Perigoso é andar pelo Congresso Nacional. Eu me sinto mais
seguro no meu bairro do que quando eu tenho que ir para Brasília.
Por que você foi morar lá?
Olha, você sabe que eu tenho origem nas camadas médias, mas logo cedo, ainda
secundarista comecei a militar no movimento estudantil. E fui me envolvendo com
os movimentos sociais, com os movimentos de esquerda e quando o MTST entra na
região metropolitana de São Paulo, em 2001, eu tinha acabado de entrar na
faculdade, eu passei a apoiar as ocupações que ocorriam, vi nessas ocupações uma
legitimidade, uma capacidade de organização e de mobilização muito forte, um
espaço onde podia renascer o contato da esquerda com o povo. O bom e velho
trabalho de base. Perdido, esquecido. Por isso fui morar nas ocupações.
Você é um sem-teto?
Existe uma falta de compreensão de quem é o sem teto por parte da sociedade
brasileira. As pessoas acham que sem teto é a pessoa que está em situação de
rua. Claro que é, mas não só ela. O déficit habitacional é de 6 milhões de
famílias no Brasil. E esse déficit é composto majoritariamente por famílias que
pagam aluguel, comprometendo uma parte expressiva da sua renda, relacionada a
coabitação, várias famílias morando na mesma casa, famílias morando em situação
de risco – esses também são sem teto. O cara que está pagando aluguel em
situação precaríssima, se amanhã ele perde o emprego ele vai para a rua. Então,
as pessoas que vão para as ocupações e se organizam no MTST são desse perfil de
trabalhadores.
Quantos vocês são?
São 35 mil a 40 mil famílias organizadas no país. Divididas em onze estados
brasileiros. Principalmente nas capitais e nas regiões metropolitanas. O
movimento se organiza através de ocupações de terrenos urbanos e de núcleos
comunitários em bairros, onde também se organiza a luta por moradia. Em São
Paulo temos mais de 90 núcleos comunitários. E 27 ocupações. É onde o movimento
é maior. É forte em Fortaleza, em Curitiba, Uberlândia, tem uma força razoável
no Distrito Federal, Rio de Janeiro.
O número de ocupações cresce ou diminui?
Há uma crescente nas ocupações urbanas e na luta por moradia. De 2008 a 2014
houve um surto inédito de especulação imobiliária no Brasil. A valorização do
metro quadrado nas maiores cidades brasileiras superou 200%, em São Paulo chegou
a 215%, no Rio de Janeiro, 260%. Isso gerou uma inflação de aluguéis. E essa
dinâmica gerou novos sem-teto. As pessoas que moravam numa região foram jogadas
em regiões mais distantes, piorando a sua qualidade de vida, foram sendo
despejadas. Terra virou ouro. A disputa pelas terras significa o aumento do
número de despejos coletivos. Tudo isso agravou o conflito fundiário urbano no
Brasil. E aumentou muito o número das ocupações. No próximo período a tendência
é que isso se torne ainda mais explosivo. A especulação imobiliária diminui com
a recessão, mas a esse processo se somam o desemprego que não havia antes e o
arrocho salarial. Como as pessoas vão pagar aluguel? A tendência no próximo
período é haver um aumento da luta por moradia.
O que você espera da relação com o novo prefeito de São Paulo? Haverá
diálogo?
Olha, o João Doria deixa claro que não quer diálogo conosco. Doria vem de uma
elite preconceituosa. Durante a campanha construiu um discurso raivoso em
relação ao movimento social, às ocupações, como se ocupação fosse um gesto de
vontade...o MTST resolveu fazer ocupações! Como se a ocupação não fosse o
resultado da falta de escolha de milhares, de milhões de pessoas a quem nunca
foi dada oportunidade de moradia digna. Ele disse que vai acabar com as
ocupações. “Não vai ter ocupações no meu governo”. É próprio de alguém que nunca
saiu do Jardim Europa. Ele não entende o que é dinâmica de ocupação. Ninguém
pede licença ao prefeito para fazer ocupação. As ocupações vão haver porque
existe um agravamento da situação social no Brasil. Ninguém vai pedir licença
pro João Doria pra fazer ocupação. E tudo indica que o governo dele tende a
reagir com repressão, com tentativa de ataque aos movimentos, ondas de despejo.
São Paulo vai virar uma praça de guerra.
A relação de vocês com a Dilma já era difícil. E agora, com Temer,
vai existir alguma relação?
O MTST sempre prezou por manter uma rigorosa autonomia política em relação
aos governos. Nunca foi um movimento do PT. O MTST fez uma série de mobilizações
de enfrentamento aos governos petistas quando a pauta do movimento não era
atendida. Evidentemente que esse cenário, com a consumação do golpe
institucional, você tem um governo que apresenta uma ofensiva maior aos
trabalhadores e isso reforça a necessidade de luta social. A relação do MTST com
os governos é uma relação de luta social. Evidentemente que o MTST negocia
programas habitacionais, sua pauta específica, mas faz isso respaldado e
rastreado na mobilização social.
Vai haver algum tipo de diálogo com o governo Temer?
É difícil...
Como você define esse governo? Direita? Centro-direita? Extrema
direita?
É um governo de direita, conservador na política, ultraliberal na
economia...a PEC 241 é um escândalo! Ela está passando sob a apatia e o silêncio
da maior parte da sociedade. Não há precedentes em nenhum lugar do mundo de uma
regra, ainda mais de uma regra constitucionalizada que estabeleça política de
austeridade por vinte anos! Congele os investimentos sociais por vinte anos!
E por que vinte anos? De onde tiraram esse número?
Deve ser um número cabalístico. O que pega aí é que, evidentemente, vai haver
momentos de crescimento econômico nos próximos dez ou vinte anos... e isso tem
sido pouco falado... que a PEC vai cortar investimentos em saúde e educação,
assistência social, programas sociais, isso tem se falado... agora, tudo bem, e
o crescimento econômico? Com o crescimento econômico vai aumentar a arrecadação,
mas como vai haver teto de gastos, mesmo com o aumento da arrecadação isso não
vai poder ir para investimento social. Para onde vai a receita do crescimento
econômico brasileiro nos próximos vinte anos? Vai para o pagamento dos juros da
dívida pública que não tem teto. Vai para meia dúzia de detentores de títulos do
estado brasileiro. Isso é escandaloso! Isso é uma captura do estado pelo capital
financeiro! É selvagem! Daí se diz olha, nós estamos num nível de endividamento
alto... a dívida em relação ao PIB representa hoje 60% do PIB... dos Estados
Unidos é 108% do PIB...do Japão, mais de 200%...na Alemanha que é o símbolo da
austeridade é de 75% do PIB...não há nada que justifique uma medida draconiana
dessa natureza. A não ser a oportunidade de rapinagem dada por uma situação
política de um governo ultraliberal, sem legitimidade social, não respaldado no
voto popular e que não tem um programa eleito que ele precise seguir. Essa
circunstância vai fazer o país pagar caro. Se isso for aprovado o brasileiro vai
pagar caro pelas próximas gerações.
Os movimentos sociais vão continuar indo pra rua contra a PEC mesmo
depois das derrotas na Câmara?
Nós temos ido às ruas contra a PEC, essa semana, no dia da votação teve
manifestação em várias capitais do Brasil. Qual é o problema? O problema é que
só os movimentos sociais não têm força suficiente para reverter o processo. As
pessoas dizem “os movimentos estão paralisados, os movimentos estão
silenciados”, o que não é verdade, tem manifestação toda semana. O problema é
que esses temas essenciais pelos quais a gente tem feito mobilização ainda não
têm atraído a grande massa, que é a principal afetada por essas políticas. A
massa trabalhadora, o povão das periferias urbanas não tem ido às ruas, a não
ser aqueles que já estão organizados em movimentos sociais. Mas esses que estão
organizados em movimentos sociais, embora combativos, importantes, não têm força
suficiente para barrar projetos dessa natureza... os caras têm 3/5 do Congresso
Nacional. Pra barrar isso vai ser preciso colocar não milhares nas ruas, mas
centenas de milhares, milhões e não é esse o cenário que está colocado, apesar
das iniciativas e das mobilizações dos movimentos sociais.
Quais são as caras que caracterizam esse governo como um governo
autoritário? Para mim, os dois rostos mais emblemáticos são os de Alexandre de
Moraes e de Sergio Moro (embora não seja do governo, mas do sistema).
Desde esse ponto de vista da escalada autoritária, de criminalização de
lutas, de criminalização dos movimentos sociais o Alexandre de Moraes representa
isso com primor. É um sujeito de índole autoritária. A primeira declaração
quando ele assume o Ministério da Justiça é que supostos excessos dos movimentos
sociais vão ser arrolados como crimes. Depois, ele vem e diz que não falta
treinamento, preparo técnico ou teórico às polícias, falta armamento, falta
poder bélico. É a velha lógica do inimigo interno que marca todos os governos
autoritários. Mas não é só o Alexandre de Moraes. Nós temos o general
Etchegoyen, com status de ministro, chefe do Gabinete de Segurança
Institucional...
E ninguém sabe o que ele faz...
Ele tem o papel de infiltrar gente, como fez com aquele capitão do Exército
aqui em São Paulo nos movimentos sociais, com o papel de monitorar os
movimentos, preparar a escalada repressiva... um cenário preocupante. Porque nós
temos esse processo atuando contra os movimentos em diversos níveis. Tem esse
nível da repressão direta, tem o nível da criminalização judicial e tem o nível
da desmoralização. Que esse não é feito no porrete. Esse é feito com aparato
midiático. Construíram um consenso na sociedade de que movimento social é coisa
de quem quer boquinha, coisa de quem quer um cargo, de quem quer pegar dinheiro
público...esse tipo de desmoralização da luta por direitos dos movimentos
sociais tem ecoado diariamente no discurso da grande mídia e ele legitima e
prepara uma criminalização e uma repressão mais dura.
Esse Plano Nacional de Segurança que está sendo preparado o que te
parece?
Eu não tenho muito conhecimento, acompanhei pela imprensa.
O nome é parecido com Lei de Segurança Nacional.
Imagino que não seja coisa boa. Vindo de onde vem, imagino que coisa boa não
deve ser...
Você acha que essa aliança PMDB-PSDB, essa maioria de 3/5 no
Congresso é coisa para durar?
Eles têm uma aliança. O Fernando Henrique chamou isso de Novo Bloco de Poder.
Agora, no meio do caminho tem um Eduardo Cunha, no meio do caminho tem a Lava
Jato, que pode criar problemas para essa aliança deles também. Não sabemos aonde
isso vai chegar, quem vai pegar, se pega o próprio Temer, quem vai pegar do
PSDB, se é que vai pegar alguém... quem vai pegar da cúpula do PMDB...há uma
incerteza no cenário político que está relacionada a isso. Mas, do ponto de
vista programático eles têm uma afinidade importante e, do ponto de vista do
método, a velha lógica de comprar votos do centrão... distribuir cargos pelos
métodos mais fisiológicos...
E banquetes... aliás, esse hábito de banquetes é dos anos 30, quando
o então candidato à presidência em 1937, Armando Salles de Oliveira oferecia
gigantescos banquetes em sua campanha, verdadeiros banquetes-comício...Parece
que voltamos à década de 1930...
Eu acho que se a volta fosse para 1930 não seria tão ruim, na minha opinião,
desde alguns pontos progressivos que se pode verificar no período Vargas. A CLT
é da década de 1940...
Em 1930 faltavam sete anos para o Estado Novo... havia tortura...
queima de livros... queimaram a obra de Jorge Amado e de José Lins do
Rego...
Claro, claro, mas o governo Vargas é um governo contraditório, teve esse
elemento repressivo mas teve elementos populares que no governo Temer não se
tem.
Nenhum.
Por isso é que eu acho que a analogia tem esse limite.
Nem eu quis comparar Getúlio com Temer... nada disso, Temer não tem
condições nem de engraxar os sapatos de Getúlio...
Não há comparação.
Quem é o Moro para você? Um fascista? Como você o descreve?
Olha...
Ele é popular na periferia?
Todo mundo que a Globo elege como herói ganha popularidade. Eu acho que o
Sérgio Moro é alguém com uma mentalidade fortemente autoritária. Mentalidade de
justiceiro. Ele trabalha no registro de justiceiro mais do que de juiz. Para
quem vale qualquer coisa para que ele possa pegar quem quer pegar. Vale passar
por cima da constituição, vale desrespeitar garantias individuais elementares,
vale acabar com o direito de defesa, vale acabar com a presunção de inocência,
vale eliminar o habeas corpus que é o elemento básico de um estado de direito. E
além dos seus procedimentos, digamos, autoritários, atua de forma evidentemente
seletiva. Não há como não ver, no caso do Lula, por exemplo, que há uma
perseguição, uma tentativa de linchamento, de julgamento, ancorado também numa
aliança com a mídia, mas há uma perseguição decidida do Moro e da Procuradoria,
colocaram como alvo: queremos prender o Lula. Depois vamos encontrar como. E é o
que eles estão fazendo há mais de um ano. Encontrando como. E preparando a
opinião pública para isso. Eu não acho Sérgio Moro referência de Justiça.
Se Lula for preso vocês vão pra rua?
Uma prisão arbitrária do Lula não é um ataque apenas ao Lula. Alguns dias
depois da condução coercitiva do Lula, em março, aconteceu um fenômeno, muito
localizado, mas que me chamou atenção. Numa ocupação do MTST na Zona Sul de São
Paulo, a polícia foi, fez uma abordagem, começou a agredir as pessoas e um dos
policiais que estava comandando falou “vai lá, chama Lula agora”! Qual é o
simbolismo disso? “Se nós estamos fazendo isso com o Lula, o que não vamos fazer
com vocês”?! Fazem isso com um cara que foi tido em qualquer pesquisa como o
melhor presidente da história do país, que saiu com uma popularidade incrível,
ex-presidente da República duas vezes...então, uma prisão arbitrária do Lula
significa um avanço no sentido dos ataques, na nossa opinião, ao movimento
social, inclusive. Evidente que vai gerar reações.
Você acha que a prisão dele seria uma espécie de declaração de
guerra?
Olha, são tantas as declarações de guerra... eu acho que essa é mais uma... a
PEC 241 é uma declaração de guerra... a reforma da Previdência é uma declaração
de guerra...os vários gestos de criminalização dos movimentos são declarações de
guerra. Essa é mais uma.
O que aconteceu com o PT? Por que o PT trilhou esse caminho que deu
no que deu?
Eu acho, Alexander, que foi uma escolha que foi sendo construída ao longo do
tempo, não foi uma decisão numa encruzilhada. Ocorreram várias encruzilhadas
nessa história. O PT nasce como uma inovação – partido vindo das lutas sociais –
nasce a quente. Resultado das greves, das comunidades eclesiais de base,
movimentos urbanos, movimentos rurais, esse caldo forma o PT. E, pouco a pouco,
ao longo dos anos 90, o PT constrói o entendimento de que o centro da sua
política e da sua estratégia é a disputa institucional, particularmente ganhar a
presidência da República. Até aí eu não vejo que esse seja o grande problema. O
problema é que isso foi dissociado das lutas e mobilizações. Se entendeu que era
necessário, para ser aceito no jogo eleitoral, abrir mão de ferramentas
mobilizatórias que eram a própria origem do PT. Era a sua substância, aquilo que
ele tinha de mais poderoso. Quando chega ao governo depois das eleições de 2002
já chega mediante essas escolhas, esses pactos. E a estratégia que estabelece a
partir de 2003, 2004 é uma estratégia de tentar governar sem conflitos. Ao mesmo
tempo que é verdade – e isso precisa ser reconhecido como mérito dos governos
petistas – que houve aumento progressivo do salário mínimo, houve crédito
popular, houve a formação de uma série de programas sociais importantes para o
povo mais pobre, ou seja, que o andar de baixo ganhou, é também verdade que isso
foi feito sem mexer com nenhum privilégio do andar de cima. Foi feito sem pautar
as reformas estruturais e populares que seriam o centro dessa estratégia de
esquerda: reforma tributária, reforma urbana, reforma agrária, o tema da dívida
pública, democratização das comunicações, democratização do sistema político. A
lógica da governabilidade junto aos setores conservadores que mantiveram o
controle do Parlamento tão enraizados no estado brasileiro significou abrir mão
de pontos fundamentais. Aí poderia se perguntar: mas poderia ser de outro jeito?
Como poderia ter sido feito diferente? É evidente que é preciso construir
condições de governabilidade, uma vez que se chega ao governo. Mas restringir
essa governabilidade a aliança parlamentar com os partidos conservadores é você
despotencializar o seu projeto político. Governabilidade também se constrói – e
há várias experiências políticas que mostram isso - nas ruas, se constrói
mobilizando, estimulando as forças sociais, inclusive a pressionar o Parlamento
e construir um polo que dê condições ao governo de tomar medidas mais à
esquerda. Foi uma sucessão de escolhas que levou à situação em que estamos hoje.
E, de algum modo, o golpe representa a ruptura da própria burguesia, que não
deixou de ganhar nesses governos, ao contrário, ganhou muito com esse pacto. Foi
o momento em que a burguesia acredita que está forte o suficiente para não
precisar mais da conciliação. E pode vir com um programa de espoliação mais
radical...
E ela também percebeu que o governo perdeu o apoio
popular...
Esse foi um ponto decisivo. Por isso que a política de ajuste fiscal
executada pela Dilma após as eleições de 2014 tem uma responsabilidade
importante no desfecho dessa situação. Porque quando ela ganha as eleições
naquele segundo turno polarizado e muito mobilizado, inclusive, e no dia
seguinte começa a aplicar o programa derrotado, faz um ajuste, por mais que seja
um ajuste que perto do que está acontecendo agora é brincadeira de criança, mas
esse ajuste fez com que a base popular que havia eleito ela e aquele programa e
ainda confiava no PT como uma alternativa e que foi colocada na condição de ter
que pagar a conta da crise, essa base, digamos, se distancia do governo, deixa
de sustentá-lo e o governo fica numa situação flutuante, não tem mais
sustentação social, ele cai para 10% de aprovação, de popularidade. Quando a
burguesia vê isso eles falam “bom, é a hora”.
Na periferia também há posições de esquerda e de direita ou são todos
de esquerda?
Claro que há posições. Agora, há na sociedade brasileira em geral uma
tremenda despolitização. Claro que essa despolitização não é responsabilidade do
PT, ela é secular. Agora, o PT teve uma oportunidade de envolver as periferias,
as massas urbanas como atores sociais e não só como beneficiários. Teria
possibilidade de trabalhar com essas pessoas como foi feito em outros lugares da
América Latina para que, mobilizadas percebessem o processo como um avanço de
direitos e não uma dádiva do estado. Ou, o que é pior, dentro do registro
meritocrático. Esse enfrentamento ideológico político não foi feito. E aí é que
vemos “prounistas” que apoiaram o impeachment e foram para avenida Paulista de
verde e amarelo. Beneficiários de políticas de melhora social que não entenderam
isso como parte da política de mudança. Periferias urbanas são complexas, você
vai encontrar lá gente de esquerda, gente com pensamento de direita, você tem
uma penetração fortíssima dos evangélicos, neo pentecostais...ainda há uma força
muito grande da lógica clientelista, mas, de forma geral, hoje, na periferia
predomina uma desilusão com a política. A crise de representatividade pega
fundo. No sentido de não se perceber alternativa de mudanças. As pessoas votam,
é evidente, votam dentro da perspectiva clientelista, mas a falta de esperança
de que algo possa mudar através da política e, em especial, da política
institucional é generalizada. Não à toa que nós nas últimas eleições tivemos um
número de abstenção, de votos nulos e brancos crescente, bateu recordes
históricos.
O que você prevê para os dois próximos anos?
Olha, há poucas certezas sobre os dois próximos anos. Talvez uma das mais
fortes delas é que será um período de instabilidade social no Brasil. Quando
aplicaram um golpe parlamentar da maneira como fizeram, quando guela abaixo da
sociedade brasileira impõem um programa que não foi eleito pelo povo, um
programa de retrocessos, de regressão social, isso abriu a porteira da
instabilidade social no Brasil. Essa ferida não se fecha do dia pra noite. Pode
ter alguns momentos como esse em que a reação não é tão forte, a maior parte da
sociedade ainda não entende o que está em jogo, demonstra uma certa apatia, mas
vão haver momentos, seguramente, de maior enfrentamento. É inimaginável que haja
os ataques da maneira que querem implementar e que isso se dê sem reação da
sociedade. Os próximos anos vão ser anos de turbulência no Brasil. Agora, acho
que precisa ser pontuado que a seletividade não começa com a Lava Jato e com
Sergio Moro. Porque o estado brasileiro historicamente é seletivo contra os mais
pobres. Garantias constitucionais na periferia nunca existiram. Habeas corpus?
Julgamento? Periferia é porrada da polícia, é extermínio, é abuso das prisões
preventivas, é forjar provas, forjar flagrantes. A ação da polícia na periferia
é uma ação miliciana. Não tem lei. Eles fazem a lei. A polícia brasileira é uma
das que mais mata no mundo. Só a polícia de São Paulo matou mais no último ano
do que todas as polícias americanas juntas. E tem os autos de resistência. É
extermínio. Juventude negra periférica é a que mais morre. Então, esse estado
policial e seletivo que fica agora aos olhos do país na Lava Jato não é nenhuma
novidade. Para a maior parte do povo brasileiro é regra há muito tempo
http://www.brasil247.com/pt/247/brasil/262837/Guilherme-Boulos-ao-247-%E2%80%9CPris%C3%A3o-de-Lula-%C3%A9-declara%C3%A7%C3%A3o-de-guerra%E2%80%9D.htm