Por Mauro Lopes, para o Jornalistas pela Democracia – Uma tradição do país são as marchinhas de carnaval. Elas registram com sarcasmo e ironia a vida cotidiana e a vida pública. Pois Bolsonaro encontro a sua marchinha de carnaval. Se você cruzar com ele dias desses, com seu cortejo de carros de vidro escuro ou andando lá pela Barra-Miami, pode cantarolar: "Ei, você aí, me dá um dinheiro aí, me dá um dinheiro aí!" A letra dos irmãos Ferreira, de 1959, contém uma leve ameaça daquele que pede: "Não vai dar? Não vai dar não?" Pode cantar o segundo verso também, combina com o personagem e a situação.
Pois é. Acabou o mito. Virou piada, galhofa. O mito avacalhou-se antes da posse.
Milhões de pessoas -quase 50 milhões de eleitores, mas muito mais gente contando suas famílias- aderiram a Bolsonaro porque em sua figura converge numa constelação simbólica: o inimigo do sistema, o incorruptível, o defensor da família, o homem de palavra, o homem comum, o homem de "verdade" e "da verdade".
É uma constelação simbólica na qual cada elemento imbrica-se com o outro.
Vários deles foram atingidos. O inimigo do sistema é na verdade alguém do sistema; incorruptível revela-se um corrupto; o homem de palavra não tem palavra; o homem "da verdade" conta mentiras.
Este é o tamanho do rombo causado pela revelação do esquema Bolsonaro-Queiroz.
Bolsonaro vai cair? Não vai nem tomar posse? Em tempos normais, a resposta seria certamente sim para a primeira pergunta e talvez para a segunda. Mas estes não são tempos normais.
De qualquer forma, a revelação dos últimos dois dias muda o cenário do país. Para usar uma imagem de fundo militar: o porta-aviões Bolsonaro foi atingido e tem um rombo enorme abaixo da linha d'água: está afundando, vai afundar.
Bolsonaro, o mito, venceu as eleições embrulhado nesta constelação simbólica. Isso acabou.
O esquema Bolsonaro-Queiroz é a repetição dos esquemas Collor-PC Farias e Temer-coronel Lima que são a marca do sistema político das elites nacionais.
De símbolo da contestação do sistema, Bolsonaro torna-se ante de sua posse, em símbolo do sistema.
O mito ruiu, o rei está nu. E do ponto de vista do imaginário popular, das relações na sociedade e, ao fim e ao cabo, das condições da luta política, isso faz toda a diferença.
A história contada por Jair Bolsonaro para se explicar no caso Queiroz não fica em pé.
Bolsonaro ganha líquido R$ 29,6 mil por mês (R$ 24 mil da Câmara e mais R$ 5,6 mil do Exército). Um total de R$ 384,8 mil anuais, contando o 13º.
Aí ele vem e diz para o Brasil que emprestou R$ 40 mil pra um cara que ganhou num ano R$ 1,2 milhão. E que o sujeito pagou com 10 chequinhos de R$ 4 mil. E que nem lembra o valor atualizado da dívida e que não registrou a operação em sua declaração de renda.
É uma versão ridícula, risível e que dará ensejo à volta da marchinha: "Ei, você aí, me dá um dinheiro aí, me dá um dinheiro aí!" . Se deu para o Queiroz, porque não daria para você ou para mim?
Mesmo que as "autoridades" acobertem, as revelações continuarão ou por investigação jornalística -o movimento Jornalistas pela Democracia tem este compromisso em sua origem- ou pelo entrechoque dos grupos de poder no interior do aparelho de Estado.
O fato é que o governo Bolsonaro acabou antes da posse. Ele pode colocar a faixa em 1 de janeiro posse e governar, mas do ponto de vista simbólico, está liquidado. Haverá uma luta política em condições muito melhores para a democracia do que se afigurava até dois dias atrás.
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