Levantamento inédito feito pela Gênero e Número e Agência Pública mostra aumento da diversidade no ensino superior
Por Diego Nunes, Mariama Correia, Raphaela Ribeiro, Vitória Régia da Silva, Gênero e Número, Agência Pública - Mulheres negras ampliaram participação nos dez cursos universitários mais procurados pelo Prouni (Programa Universidade para Todos), que concede bolsas integrais e parciais de estudo em instituições particulares de ensino superior. Ao longo de 14 anos, a presença delas em programas como Pedagogia, Direito e Medicina mais do que dobrou, segundo levantamento inédito feito pela Gênero e Número e Agência Pública.
A análise da série histórica considera informações sobre gênero e raça das matrículas entre 2006 e 2020, último ano com dados disponíveis nesse recorte, tanto de bolsas integrais quanto parciais, disponibilizados pelo Ministério da Educação (MEC). O Prouni foi criado em 2004.
Em números absolutos, as bolsas de prounistas negras nesses cursos mais do que dobraram de volume, passando de 15.340 em 2006 para 31.868 matrículas, um percentual de 108%.
Em 2006, elas representavam 28% entre os estudantes bolsistas do Prouni nos 10 cursos mais procurados do ensino superior, segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Em 2020, esse percentual cresceu para 38%.
As mulheres negras também foram o grupo demográfico que mais se beneficiou com as bolsas disponibilizadas pelo programa. Em 2012, elas ultrapassaram outros grupos chegando a representar 30% das bolsas – contra 26% de mulheres brancas, 24% de homens negros e 19% de homens brancos. Durante o período analisado, homens brancos foram o único grupo que apresentou queda proporcional no acesso a bolsas do Prouni, passando de 20% em 2006 para 15% em 2020.
Priscila Cristina Evangelista, 36 anos, nascida e criada em Guarulhos, região metropolitana de São Paulo, formou-se em pedagogia, o primeiro da lista dos dez cursos mais disputados, com bolsa de 100%. Quando ela entrou na Faculdade Torricelli, em 2006, ninguém de sua família tinha curso universitário. “Foi essa oportunidade que abriu as portas da universidade para mim. Depois para os meus irmãos, minha mãe e a minha família”. Atualmente, os dois irmãos dela e a mãe também estão formados e ela está cursando a segunda graduação em psicologia pela Universidade de Guarulhos (UNG).
Ana Paula Conceição de Souza, 24 anos, nasceu e cresceu em Parelheiros, bairro periférico do extremo sul de São Paulo. Em 2021, ela passou em psicologia, sexto curso universitário mais disputado do Brasil. Atualmente, ela estuda com bolsa Prouni 100% na Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU) de Santo Amaro.
“O Prouni para mim significa ascensão, significa acesso, porque, sem a bolsa, eu dificilmente conseguiria custear a faculdade”, conta. Da turma de oito estudantes, três possuem bolsa do Prouni. Ana, que é filha de trabalhadora doméstica e a primeira da sua família a acessar a universidade, é a única negra.
“Nos primeiros anos de faculdade, durante a pandemia, não abria a câmera e não colocava foto de perfil. Logo, os colegas não tinham como saber que era uma mulher negra. E eu comecei a perceber que as pessoas davam muito mais credibilidade para o que eu falava quando eu não tinha identidade. Até professores, sabe?”, conta.
Larissa Araujo Aniceto, 25 anos, moradora de Santo Amaro, periferia do extremo sul de São Paulo, também foi a primeira de sua família a cursar o ensino superior. Em 2016, ela foi beneficiada com uma bolsa de 100% para estudar administração na Fundação Instituto de Administração (FIA). Formada desde 2019, no terceiro curso universitário mais disputado do Prouni, hoje atua como analista de treinamento.
“Provavelmente eu teria cursado gestão empresarial (curso técnico) e entraria no mercado, mas com uma menor visibilidade do que a graduação oferece”, diz. Com a graduação, Larissa sente que está “galgando um espaço que foi negado para os meus pais”, uma dona de casa e um funcionário público que cursaram até o ensino médio.
Mais nordestinas e nortistas na universidade - A participação de nordestinas e nortistas negras no Prouni também aumentou no período analisado pela Gênero e Número e Agência Pública. Houve um crescimento de 233% no acesso a bolsas por mulheres negras do Norte e de 216% no Nordeste, que concentra a maior população autodeclarada negra do país, de acordo com a PNAD Contínua do IBGE.
Hoje no último ano da bolsa de doutorado em comunicação na UFPE, Raíssa Santos, 34 anos, moradora do Recife (PE) cursou jornalismo na Universidade Católica de Pernambuco com 100% de bolsa pelo Prouni, em 2007. Criada em uma comunidade periférica ribeirinha chamada Vila Arrais, bairro da Várzea, zona norte do Recife, ela conta que foi uma das poucas pessoas negras de sua turma. “Tinha 60 pessoas e só duas negras, eu e meu amigo, que também era prounista”.
Acessar uma universidade de elite fazia com que Raíssa se sentisse como um “peixe fora d’água”. “A gente não saía para os mesmos lugares que os outros alunos porque não tinha dinheiro. E como tinha meta de nota para não perder a bolsa, o foco era estudar. Não tinha, naquela época, referências de mulheres como eu para me espelhar. Hoje sei que sou inspiração para muitas meninas da minha comunidade”, diz.
O objetivo de Raíssa é passar em um concurso federal para fazer um projeto de comunicação na comunidade de Vila Arrais, que fica próxima da Universidade Federal de Pernambuco. “Os jovens que moram lá trabalham como flanelinhas na universidade, mas não se sentem parte do campus. Quero ajudar a inserir esses jovens no ambiente acadêmico”.
Prouni facilitou acesso à universidade, mas há desafios - O Prouni prevê cotas para ocupação de vagas por pretos, pardos e indígenas de forma proporcional às populações desses grupos demográficos em cada estado. Enquanto o acesso das mulheres negras aos cursos mais concorridos aumentou 108% pelo Prouni, a participação de homens negros também cresceu em 63% e de pessoas indígenas e amarelas 51% no período analisado pela reportagem, o que revela o impacto do programa principalmente no acesso à educação superior de grupos minoritários.
De fato, o programa serviu como um fator de diversificação do perfil de estudantes, sobretudo nos cursos mais elitistas, como medicina e direito, por exemplo, mas ainda há muitas barreiras para um maior acesso de pessoas negras ao ensino superior, considera a professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPR, Cláudia Baukat Silveira Moreira. Ela pesquisou o Prouni no seu doutorado e é autora da tese “Um olhar sobre o muro: avaliação do Programa Universidade para Todos”.
“O Prouni incluiu pessoas na universidade que sem as bolsas não estariam lá. Mas ainda há muitos desafios. O primeiro é a falta de fiscalização do quanto as bolsas são distribuídas. O segundo é que o programa, sem querer, provocou uma reconfiguração do mercado de ensino superior privado no Brasil”, explica.
De acordo com a pesquisadora, antes do Prouni, havia as instituições com fins lucrativos e as beneficentes, que gozam de imunidade tributária. Por lei, essas últimas são obrigadas a aderir ao Prouni. As privadas stricto sensu não têm essa obrigação.
“O que aconteceu, ao longo dos anos, foi que muitas das beneficentes passaram a ser instituições privadas e isso tem relação tanto com o Prouni como com outros fatores econômicos”, explica. Para ela, também falta fiscalização para uma distribuição mais proporcional e justa das bolsas e para uma melhor qualidade no ensino superior particular. “Temos hoje poucos grupos privados assumindo o controle de várias faculdades. Além disso, a pandemia apressou a oferta da educação à distância com uma qualidade muito ruim.”
Simone Nascimento, integrante do Movimento Negro Unificado e co-deputada estadual de São Paulo pela Bancada Feminista, que se formou em jornalismo em 2016 através do Prouni, diz que o programa foi criado como uma política de transição, que deveria ter sido acompanhada de outras ações para fortalecimento da educação básica e da ampliação de oferta de vagas no ensino superior público. “Menos de 20% da juventude brasileira está na universidade. Então é possível sim no Plano Nacional da Educação dos próximos dez anos, pensar em uma transição da faculdade privada para a pública”, defende.
Mesmo dentro das universidades, mulheres negras ainda enfrentam muitos desafios para garantir sua permanência e conclusão dos cursos. No âmbito do ensino superior, as desigualdades sociais, econômicas e raciais se tornam ainda mais evidentes, segundo os relatos ouvidos pela reportagem.
A concessão de bolsas de estudos, sem o complemento de programas de permanência, faz com que a evasão escolar seja mais comum do que se imagina. Segundo os Censos da Educação Superior do MEC mais recentes, em 2021, a taxa de desistência dos estudantes de instituições privadas foi de 38,8% – o que equivale a uma perda de 2,19 milhões de estudantes. De acordo com reportagem da Folha de S.Paulo, o número vem seguindo uma tendência de crescimento observada desde 2017, quando a taxa de evasão nas instituições privadas era de 29,8%.
Sem apoio, Larissa não teria conseguido concluir a graduação. Durante o curso, mesmo com bolsa integral do Prouni, ela precisou contar com ajuda financeira dos pais para gastos com alimentação, xerox e transporte até o campus, que ficava há mais de 20 quilômetros de distância da sua casa. Além disso, enfrentou preconceito por ser a única mulher negra e bolsista. “Isso me impactou durante os quatro anos, a forma como eu lidava com a turma e como eu era acolhida e recebida”, lembra.
Para ela, não basta apenas inserir mulheres negras no ensino superior, sem promover um ambiente receptivo. “Essas dificuldades reforçam as barreiras para o ingresso de mulheres negras na universidade. É importante ter auxílio e incentivo também para que a gente permaneça.”
O Ministério da Educação não respondeu os questionamentos da reportagem até a publicação.
Fonte: https://www.brasil247.com/brasil/mulheres-negras-dobram-participacao-nos-cursos-mais-disputados-do-prouni
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