“Se tivessem me falado dos perigos, eu não teria autorizado”, diz irmã de paciente medicada com cloroquina sem consentimento
21 de julho de 2020, 04:56 h Atualizado em 21 de julho de 2020, 07:42
Jair Bolsonaro toma cloroquina (Foto: Reprodução | Reuters)Por João de Mari, da Agência Pública – No dia 1º de maio deste ano, o telefone da auxiliar de enfermagem aposentada e cuidadora de idosos Zileide Silva do Nascimento, de 56 anos, tocou em sua casa em Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo, enquanto ela se arrumava para iniciar um fim de semana de trabalho. Do outro lado da linha, uma pessoa da equipe comandada pelo médico Renan Kenji Hanada Pereira, que atua no Hospital Municipal de Mogi das Cruzes, referência no tratamento da Covid-19 na região, informou o estado de saúde de sua irmã Zemilda Silva do Nascimento Gonçalves: “Ela está estável, mas entramos com o medicamento hidroxicloroquina”.
Zemilda, que passou duas semanas internada no hospital por causa da Covid-19, seguiria com o tratamento por mais três dias, segundo o informado pelo hospital. A dona de casa de 54 anos foi medicada com a hidroxicloroquina entre os dias 30 de abril e dia 4 de maio. Depois disso teve que fazer duas hemodiálises porque teve problemas nos rins. No dia 10 de maio, porém, Zileide recebeu um telefonema esperançoso: a equipe médica disse que o estado de saúde de sua irmã estava melhorando, que o pulmão ainda estava afetado, mas que os demais órgãos estavam reagindo bem, inclusive o rim.
Mas na madrugada do dia 11 o hospital ligou para Zileide comunicando o óbito de Zemilda. “Um médico só me falou que ela teve uma parada respiratória. Esse médico me disse que ela estava mal, com os rins comprometidos, completamente o oposto do que me passaram horas antes”, conta Zileide, relembrando a dor de não poder reconhecer o corpo de sua irmã, pois não tinham roupa apropriada.
“Não assinei o reconhecimento do corpo. O hospital me informou que iria verificar se tinha roupa apropriada para eu entrar em uma ala com dois pacientes mortos pela Covid-19, mas no final das contas só me pediram para assinar o atestado de óbito.” No velório, Zileide e seus familiares ainda tentaram olhar para a irmã pela última vez. Ao perguntarem aos funcionários do cemitério como eles tinham certeza de que era Zemilda dentro do caixão lacrado ouviram que bastava ler seu nome na etiqueta colada na madeira.
Na certidão de óbito de Zemilda Silva do Nascimento Gonçalves, constam como causas da morte insuficiência respiratória aguda e infecção por coronavírus, HAS (pressão alta) e hipercolesterolemia (colesterol alto). As duas últimas complicações, que Zemilda já apresentava ao ser internada, além de obesidade mórbida, estão relacionadas com problemas cardíacos, o que torna ainda mais perigoso o uso de cloroquina e hidroxicloroquina, como já comprovaram estudos realizados no Brasil e em outros países. No dia 17 de junho, a Organização Mundial da Saúde (OMS) suspendeu definitivamente as pesquisas para avaliar a eficácia da cloroquina e de sua derivada, a hidroxicloroquina, pois os resultados mostram que, além de representar riscos para pacientes, não há benefício na droga para tratar a doença provocada pelo novo coronavírus.
Zemilda era mãe solo de um menino de 14 anos que nasceu com síndrome de Down. A irmã, Zileide, que cuida do garoto enquanto ele não vai morar com a família do pai, falecido há quatro anos, diz pra ele todas as noites que Zemilda “virou uma estrelinha no céu”, como ela conta.
Desrespeitando o protocolo
O telefonema em que Zileide foi informada de que Zemilda seria medicada com hidroxicloroquina ocorreu no terceiro dia de internação. A comunicação diária com familiares de pacientes foi adotada como protocolo por muitos hospitais brasileiros durante a pandemia porque os familiares não podem acompanhar os doentes na internação. Mas, em relação ao uso da cloroquina e hidroxicloroquina, o protocolo do Ministério de Saúde não foi cumprido, de acordo com o relato dos familiares. Eles dizem que Zemilda não poderia ter autorizado o uso dos medicamentos, como exigido, porque estava entubada; nesse caso, segundo o protocolo, a família é que teria que consentir, mas alega que foi apenas comunicada do tratamento. Também não foi informada de que a droga não tem eficácia nem segurança cientificamente comprovadas, razão pela qual paciente e/ou família poderia recusar a medicação, conforme o protocolo do Ministério da Saúde.
A irmã Zileide, que já trabalhou como enfermeira em uma UTI de um hospital particular de Mogi das Cruzes, diz que nem sabia da existência desses protocolos. “No primeiro dia, o hospital me disse: ‘Sua irmã está ruim; segundo dia, está ruim; no terceiro dia, falaram que entraram com hidroxicloroquina’. Eu até pensei: ‘Só agora?’. Eu imaginava que fosse algum medicamento bom. Se tivessem me falado dos perigos, eu não teria autorizado.”
O Hospital Municipal de Mogi das Cruzes, onde Zemilda foi internada e morreu, é referência ao combate da pandemia de Covid-19, sendo a unidade mais equipada das dez cidades que compõem a região do Alto Tietê. Inaugurado em 2014, em uma parceria entre o estado de São Paulo e a prefeitura, hoje é administrado pela Fundação do ABC, uma Organização Social de Saúde (OSS). A Agência Pública entrou em contato com a OSS pedindo explicações sobre o protocolo conhecido internamente como “Protocolo Covid”, que traz as normas para ministrar as drogas — uma combinação da hidroxicloroquina com antibióticos e antivirais — no tratamento do coronavírus. Solicitou também entrevistas com o diretor do hospital e com o médico responsável por atender Zemilda. A assessoria de imprensa informou apenas “não divulgar dados relacionados ao atendimento prestado aos pacientes, como determina o Código de Ética Médica”.
Bolsonaro e os protocolos da cloroquina
Desde o início da pandemia, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) pressionava sua equipe de saúde a adotar um protocolo orientador sobre o uso da cloroquina. Em maio, com a queda do segundo ministro da pasta, Nelson Teich, que era contra a recomendação do presidente assim como o anterior, Luiz Henrique Mandetta, criou-se um documento de orientação ao uso da hidroxicloroquina em pacientes com a Covid-19, que teve versão atualizada em junho, incluindo diretrizes para lidar com gestantes e crianças.
Na sexta-feira passada, porém, o Ministério da Saúde admitiu a possibilidade de rever o uso da cloroquina, também condenado pela Sociedade Brasileira de Infectologia. Bolsonaro também moderou o discurso por temor de um possível julgamento no Tribunal Penal Internacional por suas atitudes na pandemia, inclusive em relação à propaganda que fez da cloroquina, pelo risco que representa para os pacientes.
Até o momento, porém, a orientação do Ministério da Saúde recomendando a cloroquina continua sendo a base de diversos protocolos de atendimento em cidades por todo o país — Mogi das Cruzes é uma delas. Cerca de um mês antes da publicação da normatização, porém, o município já anunciava que adotaria um protocolo único para o uso da cloroquina. Segundo o prefeito Marcus Melo (PSDB), a medida foi tomada após uma decisão do Comitê Gestor do Coronavírus em conjunto com diretores clínicos dos hospitais públicos e privados. A reportagem tentou contato com o Comitê Gestor do Coronavírus, solicitando explicação sobre a medida. Até o fechamento, porém, não teve resposta.
À época, o secretário municipal de Saúde, Henrique Naufel, destacou que a indicação do medicamento ficaria a cargo do médico responsável pelo paciente. Mas, segundo orientações, a prescrição seria feita assim que o paciente fosse internado com o objetivo de prevenir eventuais complicações e reduzir o número de casos que precisem de UTI. “Desde que haja prescrição médica e consentimento do paciente ou da família, a cloroquina já tem sido utilizada”, explicou Naufel.
Mas nem as secretarias municipais nem o Ministério da Saúde estão fiscalizando o uso da droga, o que preocupa sindicatos e entidades de profissionais. Victor Vilela Dourado, presidente do Sindicato dos Médicos de São Paulo (Simesp), diz que não cabe à entidade regular e fiscalizar as decisões dos médicos.
“O Simesp é contra orientações que não tenham comprovação científica. No caso do uso de hidroxicloroquina em pacientes de Covid-19, vale ressaltar que, segundo os pareceres da Sociedade Brasileira de Infectologia e da Sociedade Brasileira de Imunologia, pode ocorrer malefícios graves à saúde dessas pessoas”, afirmou.
Também não há canais para os profissionais comunicarem à Vigilância Sanitária ou outras autoridades o uso de hidroxicloroquina na Covid-19. Ou seja, em todo o Sistema Único de Saúde (SUS) a única maneira de saber se o medicamento foi prescrito a algum paciente com coronavírus é pelo prontuário médico.
“O que está acontecendo com as normas do governo federal para o uso da hidroxicloroquina é que o médico fica desobrigado de avisar qualquer autoridade sanitária. Mas mesmo assim ele tem que avisar a família ou paciente, e isso está na própria normatização”, diz a médica e diretora da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, Denize Ornelas.
Denize lembra que, além do descontrole no uso do medicamento e da impossibilidade de saber exatamente como o protocolo está sendo executado, medicar pacientes com hidroxicloroquina sem autorização pode levar o profissional a responder processos éticos no Conselho Federal de Medicina (CFM). “Por mais que o protocolo do governo federal não tenha força de lei, não me obrigando a prescrever nada tanto para Covid-19 quanto para outra doença, porque meu exercício profissional não pode ser restrito por nenhum protocolo, o documento está tendo um valor para respaldar os médicos que querem fazer isso”, avalia.
A médica explica que uma possibilidade para a manipulação da hidroxicloroquina sem autorização do paciente ou família seria o médico declarar o chamado “uso compassivo” — reservado a doentes em estado grave e com prognóstico ruim. No entanto, a ação deve estar detalhada no prontuário do paciente.
O prontuário de Zemilda
A Pública constatou que o prontuário médico da paciente assinado pelo médico Renan Kenji Hanada Pereira, a que teve acesso, não registra informações sobre seu consentimento — ou de seus parentes — ao uso da hidroxicloroquina. Procurado pela Pública por telefone, o dr. Hanada disse que não se lembra do caso da paciente e que todas as dúvidas referentes aos protocolos devem ser tratadas com o hospital. A reportagem enviou o prontuário para que ele analisasse o conteúdo, mas não obteve resposta até a publicação da matéria.
O prontuário de Zemilda revela o descumprimento também de um protocolo da Secretaria Municipal de Saúde de Mogi das Cruzes, qualificado no próprio documento como fundamental para “iniciar o tratamento antes do agravamento do caso e, desta forma, reduzir a necessidade de internação e de cuidados de terapia intensiva”.
Elaborado apenas em maio deste ano, o protocolo orienta as Unidades de Pronto Atendimento (Upas) 24 horas e Unidades Básicas de Saúde (UBS) a encaminhar os pacientes suspeitos de Covid-19 diretamente ao Hospital Municipal de Mogi das Cruzes. Antes de ser internada, porém, Zemilda procurou atendimento médico duas vezes: no dia 23 de abril, ela foi à Upa Oropó com sintomas de febre, coriza e tosse. Foi medicada e voltou para casa. No dia 27 de abril, retornou ao posto sentindo falta de ar. Assim como da primeira vez, recomendaram que voltasse para casa.
Só no dia 28 de abril, quando foi socorrida por uma ambulância do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), acionada pela irmã Zileide, a dona de casa foi levada ao Hospital Municipal de Mogi das Cruzes. Entrou na unidade às 20h44.
“Me deixaram ver minha irmã de longe, e ela estava sentada em uma poltrona, ainda dizendo que estava com muita falta de ar. Era 3 e pouco da manhã e ela ainda estava lá”, relembra a enfermeira.
A internação só ocorreu cerca de 12 horas após a entrada no hospital, na manhã do dia 28 de abril. “Me pediram para subir junto para o quarto, o que achei um protocolo super errado, porque subi dentro do elevador com uma cama enorme, três auxiliares e uma mulher que parecia enfermeira. Eu fui bem próxima à minha irmã, que estava com a Covid-19”, conta Zileide.
Além de Zemilda, ao menos cinco pessoas de sua família testaram positivo para a Covid-19 à época. Uma de suas irmãs também teve que ser internada.
Cloroquina a rodo nos hospitais públicos
O enfermeiro Rodrigo Romão, profissional que esteve na linha de frente em hospitais de campanha administrados pela mesma OSS do Hospital Municipal de Mogi das Cruzes, acredita que os carregamentos de cloroquina e hidroxicloroquina que estão chegando aos hospitais acabam impulsionando as prescrições feitas pelos profissionais de saúde, também pressionados pelos administradores.
Até maio deste ano, que são os dados mais recentes do governo, o Ministério da Saúde adquiriu 3 milhões de comprimidos de cloroquina. À época, o órgão anunciou que estaria negociando com o Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército (LQFEX), que já tinha produzido 1 milhão de comprimidos e colocado à disposição da pasta a produção de novas unidades do medicamento. Até aquele mês, foram distribuídos 2,9 milhões de comprimidos de cloroquina em três envios diferentes para os estados com base no número de casos confirmados apresentados nos boletins epidemiológicos do próprio ministério.
“O Ministério da Saúde vai mandar cloroquina para todo lugar, porque compraram muitos remédios. Hospitais particulares de referência como o Albert Einstein, por exemplo, não vão se queimar por causa de uma declaração do presidente sobre um medicamento sem comprovação de eficácia. Já nos hospitais públicos parecem adotar protocolos para empurrar a medicação nos pacientes”, diz ele, que também é o diretor do Sindicato dos Enfermeiros do Estado de São Paulo e representante da subsede da entidade em Mogi das Cruzes.
O hospital de elite Albert Einstein, localizado em São Paulo, epicentro da doença no Brasil, em 25 de junho orientou que seus médicos não prescrevessem cloroquina e hidroxicloroquina. O Einstein foi a unidade que admitiu o primeiro paciente com sintomas da Covid-19 no país.
“Se o próprio governo contrata as empresas para que elas façam o atendimento sem serem obrigadas a abrir os dados, ele dá total autonomia para fazer a administração do jeito que bem entendem”, diz Kátia Santos, diretora do Sindicato dos Trabalhadores Públicos da Saúde no Estado de São Paulo (SindSaúdeSP) da região do Alto Tietê. “As Organizações Sociais que administram os hospitais de campanha têm adotado a prática de prescrever a cloroquina”, afirma.
A batalha pró-cloroquina
A cloroquina é utilizada há muitos anos para a prevenção e tratamento da malária, e sua derivada, a hidroxicloroquina, indicada para o tratamento de algumas doenças reumáticas como artrite reumatoide e lúpus. Em março, após pesquisadores chineses demonstrarem, em laboratório, que essas drogas tinham a possibilidade de inibir a replicação do coronavírus, seu uso foi encampado como causa pelos presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro, que fizeram propagandas públicas do medicamento. Trump chegou a dizer que estava tomando a droga preventivamente. Já Bolsonaro, após ter declarado em 7 de julho passado que testou positivo para a Covid-19, disse estar usando o medicamento e se “sentindo muito bem”.
A batalha se transferiu para as redes sociais, onde apoiadores de Bolsonaro, inclusive médicos pró-cloroquina, defendem abertamente o seu uso e de sua derivada, apesar do parecer contrário de cientistas de todo o mundo. No dia 3 de julho, o site Covid Tem Tratamento Sim, que divulgava o tratamento com um coquetel de medicamentos, incluindo a hidroxicloroquina, como cura para a Covid-19 (com base em uma suposta análise feita por uma comunidade médica internacional), saiu do ar depois de uma reportagem publicada no Uol mostrando que, dos 17 profissionais citados no site, ao menos três disseram não ter conhecimento do uso de sua imagem. A página retornou ao ar em 7 de julho sem citar os nomes das medicações e dos profissionais que estariam dispostos a receitar as drogas.
A obsessão bolsonarista pela cloroquina atrapalhou o trabalho de médicos que estão na linha de frente do atendimento à Covid-19. Uma pesquisa realizada pela Associação Paulista de Medicina (APM), publicada no dia 7 de julho, apontou que 69,2% dos médicos afirma que notícias falsas, informações sensacionalistas ou sem comprovação técnica são inimigos que hoje enfrentam simultaneamente à pandemia. Outros 48,9% falam que, por causa das fake news, pacientes e familiares pressionam por tratamentos sem comprovação científica, incluindo drogas como cloroquina e hidroxicloroquina.
Uma pesquisa do Instituto Ipsos, que consultou formadores de opinião e jornalistas de 14 países da América Latina, publicado em abril deste ano, revelou que o Brasil apresenta um dos piores índices de “bom exemplo” durante a crise do coronavírus, com apenas 14%, ficando à frente apenas do México, com 12%, e Venezuela, com 11%.
Para Pedro Tourinho, professor de saúde da família da PUC-Campinas e médico sanitarista especializado em medicina preventiva e social, o principal responsável pela má performance brasileira no combate a pandemia é o governo, especialmente o presidente da República, que promoveu a desinformação entre os brasileiros com seus discursos sobre a “gripezinha” e a cloroquina, e com atos de desrespeito público a normas de prevenção da doença.
“O principal prejuízo, na minha opinião, foi que o Bolsonaro boicotou as orientações de isolamento social. A cloroquina foi parte desse combo, porque ele vendeu às pessoas uma falsa cura, como bom charlatão que ele é. Isso fez com que muitas pessoas topassem se expor a um risco maior, e isso indiscutivelmente levou a dezenas de milhares de mortes.”
Até o fechamento desta reportagem, o Brasil registrava mais de 2 milhões de casos confirmados da Covid-19 e quase 80 mil mortes decorrentes do vírus.
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