
Marisa Letícia
Publicado no blog
do Marcelo Auler.
POR FREI BETTO
Se há uma mulher que não pode ser considerada mero adereço do marido é Marisa
Letícia Lula da Silva. Conta a fábula que, tendo sido coroado, o rei nomeou para
o palácio um lenhador que, na infância, fora seu companheiro de passeios pelo
bosque. Surpreso, o pobre homem escusou-se frente à tão inesperada deferência,
alegando que mal sabia ler e não possuía nenhuma ciência que justificasse sua
presença entre os conselheiros do reino. “Quero-o junto a mim – disse o rei –
porque preciso de alguém que me diga a verdade”.
Marisa não tem a vocação política de Lula, mas sua aguçada sensibilidade
funciona como um radar que lhe permite captar o âmago das pessoas e discernir as
variáveis de cada situação. Por isso, é capaz de dizer a Lula verdades que o
ajudam a não se afastar de sua origem popular nem ceder ao mito que se cria em
torno dele. A simplicidade talvez seja o predicado que ela mais admira nas
pessoas.
Nascida em São Bernardo do Campo, numa família de pequenos sitiantes, ela
guarda a firmeza de caráter de seus antepassados italianos. Comedida nas
palavras, a ponto de preferir não dar entrevistas, não faz rodeios quando se
trata de dizer o que pensa, doa a quem doer. Por isso não pode ser incluída
entre as tietes do marido. Nos palanques, prefere ficar atrás e não ao lado de
Lula.
A admiração recíproca que os une não impede que, ao vê-lo retornar de uma
maratona de reuniões, às 3 da madrugada, ela o convoque para criticar o
desempenho dele numa entrevista na TV ou compartilhar decisões domésticas.cara a
cara, não corre o risco de se deixar enredar pela lógica política do marido.
Defensora intransigente de seu próprio espaço, não chega a ser o tipo de esposa
que compete com o parceiro. Sabe que seus papéis são diferentes e
complementares. Mas ninguém é aceito na intimidade dos Silva sem passar pelo
crivo dela, que sabe distinguir muito bem quem são os amigos do casal e quem são
os amigos de Lula.
Tanto quanto Lula, Marisa conhece as dificuldades da vida. Décima filha de
Antônio João Casa e Regina Rocco Casa, cresceu vendo o pai carregar a charrete
de verduras e legumes que ele plantava e vendia no mercado. Se o sítio era
pequeno, suficiente para assegurar a precária subsistência da família de onze
filhos, o coração dos Casa era grande o bastante para acolher os necessitados.
Dona Regineta – como era tratada sua mãe – ficou conhecida como benzedora em São
Bernardo do Campo pois, na falta de médicos e de recursos, muitas pessoas a
procuravam, especialmente quem padecia de bronquite.
A filha estudou até a 7ª série. Ainda criança, viu-se obrigada a conciliar a
escola com o trabalho, empregando-se como babá na casa de um sobrinho de
Portinari. Aos 13 anos de idade, tornou-se operária na fábrica de chocolates
Dulcora. Do setor de embalagem Marisa foi promovida a coordenadora de seção
antes de, aos 20 anos, trocar a Dulcora por um cargo na área de educação da
prefeitura de São Bernardo do Campo, onde trabalhou enquanto solteira.
Em 1970, ela se casou com Marcos Cláudio dos Santos, motorista de caminhão.
Seis meses depois, ele morreu assassinado, quando dirigia o táxi do pai,
deixando Marisa grávida do filho Marcos, que Lula considera seu primogênito. Em
1973, ao recorrer ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo para
obter um pecúlio deixado pelo marido, Marisa conheceu Lula. De fato, foi
paquerada dentro de um verdadeiro cerco estratégico montado pelo presidente do
sindicato, que ouvira falar de uma “lourinha muito bonita” que andava por ali.
Lula tentou convencê-la de que também era viúvo, sem que a moça acreditasse,
até ver o documento que ele, de propósito, deixara cair no chão. A primeira
mulher de Lula, Maria de Lourdes, morrera em 1971, com o filho que trazia no
ventre, em consequência de uma hepatite mal curada. Em maio de 1974, Lula e
Marisa se casaram. Da união nasceram os irmãos de Marcos: Fábio, Sandro e Luís
Cláudio.
Nos primeiros anos de casada, Marisa não gostava de política. O progressivo
comprometimento de Lula com atividades sindicais alterava a rotina da casa.
Obrigada a levantar cedo para despachar as crianças para a escola, ela esperava
o marido regressar de reuniões que se prolongavam madrugada adentro. No fogão, a
comida pronta para ser requentada, já que Lula prefere não comer em
restaurantes.
Depois de deitar os filhos, ela acompanhava as telenovelas sem entusiasmo. E,
com razão, se queixava da difícil tarefa de atender a mais de cem telefonemas
por dia, muitas vezes sem conseguir convencer os interlocutores de que ela não
controla a agenda do marido, não sabe se ele poderá ou não participar de um
evento em Porto Alegre ou no Recife e, muito menos, o que ele pensa do último
pronunciamento do ministro da Fazenda.

O casamento em 1974
Em abril de 1980, ela passou pela prova de fogo, quando Lula esteve preso no
DEOPS de São Paulo, devido à greve de 41 dias. Preocupada com a segurança dele,
sempre fez questão de abrir a porta quando estranhos batiam, evitando expor o
marido. No mesmo ano, fez o curso de Introdução à Política Brasileira, promovido
pela Pastoral Operária de São Bernardo do Campo. Filiada ao Partido dos
Trabalhadores, abriu sua casa para as reuniões do núcleo petista que se
organizara no bairro Assunção, onde moravam. O engajamento da mulher levou Lula
a participar mais diretamente das tarefas domésticas. Mas é ela quem cuida das
finanças da casa.
Dela depende também a logística pessoal de Lula, cujas roupas é ela quem
compra geralmente. Como ele costuma andar de bolsos vazios, sequer trazendo
consigo a carteira de identidade, da bolsa de Marisa surgem o talão de cheques e
a caneta com a qual Lula dá autógrafos. Durante as campanhas presidenciais,
Marisa sempre levava, nas viagens, uma coleção de camisas para que, após cada
comício, ele pudesse trocá-las.
Embora Marisa prefira, em política, o papel de assessora mais íntima do
marido e não goste de fazer discursos e nem mesmo ser o centro das atenções, ela
não dispensa a oportunidade de participar de conversas políticas. Seja qual for
o interlocutor, Lula jamais pede a Marisa que se retire, exceto para buscar um
café. No fogão, ela prefere o trivial: arroz, feijão, bife e salada de alface
com tomate, embora o seu prato predileto seja camarões e um bom copo de vinho. O
cardápio especial fica por conta do marido que, de italiano, só tem o apetite:
espaguete a carbonara.
Para quem chega, há sempre uma xícara de café. Sair sem aceitá-la é
considerado quase uma ofensa. E ela se compraz em ler toda a correspondência que
o marido recebe nos comícios, bem como em distribuir estrelinhas do Partido às
crianças.
Devota do Sagrado Coração de Jesus, cuja folhinha jamais dispensa, essa
ex-Filha de Maria tem, como Lula, a impressão de que Deus comanda os seus
passos. Mas, por curiosidade, gosta de ler seu horóscopo nos jornais.
Habilidosa na arte do silk-screen, Marisa fez a primeira bandeira do PT, num
tecido vermelho trazido da Itália. Em 1981, montou em casa uma pequena oficina
para estampar camisetas com símbolos do Partido, inclusive criações de Henfil.
Para a campanha de Lula a deputado federal, em 1986, ela chegou a estampar cerca
de vinte mil camisetas, vendidas para angariar fundos. Ciosa de sua privacidade
familiar vira uma fera quando a imprensa tenta entrar pela porta de sua casa ou
incluir seus filhos no noticiário. Em tais situações, só o cuidado das plantas é
capaz de acalmá-la.
Desprovida de vaidade, Marisa se veste pelo figurino do bom gosto, evitando a
sofisticação. Compra a roupa que lhe agrada, sem conferir a etiqueta. Ela sempre
foi sua própria manicure e pedicure. Avessa a protocolos, gosta mesmo é de ficar
entre amigos, cercada de muita planta e água, em qualquer lugar em que os filhos
possam se divertir, livres das normas de segurança. Um bom jogo de buraco, o
papo solto, o marido de bermudas ao seu lado e o telefone desligado – é o que
basta para deixá-la em paz.
http://www.diariodocentrodomundo.com.br/marisa-leticia-por-frei-betto/
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