Por Miguel do Rosário, no Cafezinho
O Cafezinho publica a transcrição da entrevista em vídeo, dada pela professora de Direito da UFRJ, Carol Proner, ao Cafezinho, há algumas semanas.
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Eu sou Carol Proner, professora da UFRJ, da Faculdade de Direito, eu dou aula de Direito Internacional e de Direitos Humanos, e estou aqui pra conversar com você, do Cafezinho.
O livro está sendo esperado por muita gente, já tem muita gente nos pedindo o lançamento, acho que devemos fazer um lançamento nacional, ele vai correr o país. Porque todo mundo quer saber o que é que está escrito lá na sentença e não apenas pela sentença, todo mundo quer entender e tentar fugir um pouco desse bloqueio midiático que há em torno desse juíz, o exemplo desse juíz ídolo. Então, está sendo muito esperado pelas faculdades de Direito, obviamente, e pelo campo jurídico, principalmente, mas não só. Os movimentos sociais querem saber o que está acontecendo. Eu diria que é algo que está sendo demandado por muita gente.
Esperamos que possa contribuir para esclarecer esse momento. Acho que os autores que escreveram têm um objetivo, que é ser útil nesse momento de tanta contra-informação, de tanta pós-verdade, pra usar uma expressão que está na moda. Temos também o objetivo de sensibilizar, de uma forma geral, quem pensa diferente, do ponto de vista jurídico. Convencer o tribunal, nós não somos arrogantes a esse ponto. Eu acho que o tribunal tem sua própria forma de convencimento e a gente espera que ela seja dentro da legalidade. Seria uma grande decepção se o tribunal confirmasse a sentença frágil do jeito que ela é.
Aí, sim, acho que teríamos que escrever um livro um pouquinho diferente, que demonstrasse uma certa desilusão completa. Acho que o livro não tem esse tom de desilusão. Um ou outro artigo fala que o Direito já morreu. Eu acho que, em muitos aspectos, a gente fica assustado. Será que o Direito morreu mesmo ou será que a gente tem esperança na reforma da sentença pelo segundo grau, como é natural em qualquer processo e que volte-se a colocar o processo nos trilhos da legalidade, que seja corrigido naquilo que ele tem de fundamental, que é falta de provas, a falta de elemento probatório mesmo. Isso está evidenciado por tantos autores aqui do processo penal.
Então, é modesto nosso fim. Não é um fim revolucionário, não. Mas nesse momento, é necessário. O campo jurídico está convocado a traduzir o que está acontecendo na sociedade brasileira.
Tempo recorde
Foi incrível. Convidamos colegas juristas do país todo. Em uma semana, tivemos a adesão de 100 artigos, 120 autores, que deixaram de fazer o que estavam fazendo para poder comentar essa sentença extensa que foi proferida condenando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Foi uma decisão que não imaginávamos. Em uma semana, todos pararam o que estavam fazendo pra fazer a leitura dessa longa sentença e dar seu parecer.
Então, é um livro organizado por professores. Temos aí a Gisele Citadino, que tem sido minha companheira em outras atividades, em outros eventos e livros. Gisele Ricobom, que é uma professora da UNILA, do Paraná. O professor João Ricardo Dornelles e eu. Nós temos feito coisas juntas, tentando denunciar um pouco do que vem acontecendo na área jurídica, quando o Direito não é cumprido ou não é observado.
Então, esse livro é mais uma dessas tentativas de demonstrar o que está acontecendo, tentando traduzir um pouco o juridiquês, tentando aproximar da população uma informação mais completa desse momento difícil que o país vive e que está completamente conectado com uma sentença, com uma operação de combate à corrupção, com autoridade do poder judiciário e de um juíz, especificamente. Então, nós consideramos necessário que exista esse material, esse livro, que já passa das 400 páginas, contendo esses comentários sobre a sentença. Nós o chamamos, e aí eu posso dizer o título em primeira mão para o Cafezinho: “Comentários a uma sentença anunciada: o caso Lula”. Por que anunciada? Acho que não precisamos nem explicar. Todos já sabíamos que a sentença viria e que seria condenatória. E é uma pena que todos nós já imaginávamos a sentença anunciada, porque não deveria ser assim no Poder Judiciário, em um julgamento. Nós deveríamos ser surpreendidos pelo resultado final, afinal de contas havia, em tese, o contraditório. Mas, justamente, nós brincamos com esse título, porque não houve surpresa. O que há de surpresa na sentença está sendo esmiuçado pelos artigos, pelos comentários. As surpresas são decorrentes da fundamentação da sentença, mas não do resultado final condenatório. Isso não surpreendeu a ninguém.
A crítica
É constrangedor para qualquer pessoa da área do Direito comentar e criticar uma sentença com argumentos duros, como, de certa forma, são feitos no livro. Ninguém fica confortável. Acredito que nenhum professor na área de Direito Público, Direito Constitucional, Direito Penal e Processo Penal, Direitos Humanos se sinta feliz com um livro como esse. Não é um livro que nos traz alegria. É um livro que nos traz preocupação, ninguém aqui está comemorando nada. Nós estamos preocupados, como é que pudemos chegar a esse ponto?
Nesse caso, um juiz monocrático. 20% da sentença, praticamente, é a defesa do juiz das acusações de todos os réus a respeito da sua conduta como juiz imparcial, ou que deveria ser imparcial, na utilização das provas, da produção das provas, ou no cerceamento de defesa do réus ou dos réus e dos advogados. Então, é uma sentença inédita, inclusive, nesse aspecto. A impressão que dá pra um leigo que está lendo a sentença, e eu tenho alguns amigos que são de outras áreas – das artes, da literatura, de outras áreas – que dizem: “que curioso, um juiz que passa tantos itens, quase 150, buscando defender-se”. Às vezes, a impressão que dá é que o juiz é um acusador. Durante os depoimentos, a coleta dos depoimentos, inclusive do presidente Lula, isso ficou claro, parecia que ele era um acusador, se misturava com a função do Ministério Público, o acusador do processo, e às vezes, durante a sentença, parece que ele é o réu, o réu de acusações. Então, isso é muito inusual. Nós vivemos uma situação em que o judiciário, no caso, é diferente, digamos, é absolutamente inusual a conduta do magistrado, dentro dos autos, na sentença, pronunciando-se publicamente, tentando fazer uso da imagem conquistada como um combatente da corrupção, o que não seria mau, mas utilizando isso buscando apoio na opinião pública. Então, nós vivemos realmente uma situação em que, no mínimo, causa estranhamento no campo jurídico essa conduta desse magistrado curitibano.
Moro aos olhos do mundo
Temos duas coisas aí: uma, do ponto de vista jurídico, e nós temos três artigos dentro do livro, que falam do aspecto internacional. É plasmado, é consolidado na jurisprudência internacional, nas sentenças das cortes, tanto da Corte Interamericana, que tem ampla jurisprudência defendendo o devido processo legal, que é uma espécie de guarda-chuva, dentro dele cabem vários outros princípios, é a base do direito à defesa de qualquer pessoa que esteja acusada de qualquer crime e, principalmente, em situações relacionadas a direitos individuais, direitos humanos. É também jurisprudência da corte europeia, enfim, isso é uma conquista civilizatória do Direito em todas as ordens jurídicas que se dizem democráticas. Então, o devido processo legal é uma das acusações que nós temos reiteradamente colocado como em perigo por essa sentença e não só pela sentença, mas pela forma do julgado, pelo processo como um todo, incluindo a produção de provas, a forma da ouvida das testemunhas, ignorando testemunhas de defesa durante a pronúncia da sentença. Ou seja, por vários aspectos.
Por outro lado, o aspecto que é indissociado do processo, que é a figura do réu. É impossível separar quem é o réu do processo, ainda que haja necessidade de distância por parte do juiz natural, vamos dizer, do juiz que se coloca como independente de quem é o réu e daquilo que ele representa, mas isso é indissociado, é impossível separar e ele próprio, o magistrado, não o faz, não separa. Em vários momentos da sentença, e isso fica claro, aparece a correlação do réu que era presidente da República, do réu que é uma figura política e que tem uma biografia ligada ao país, então, essa conexão política e biográfica do réu afeta a visão do magistrado e isso está claro tanto na sentença quanto – muito mais claro ainda – durante o processo, na acolhida das testemunhas e da chamada delação premiada e também a conduta pessoal do magistrado nas fotografias, nos atos sociais, nessa visibilidade inadequada, indevida, que é estranha ao código de ética da magistratura, por exemplo, totalmente inusual, inadequado.
Então, claro que isso choca no plano internacional, choca o campo jurídico internacional. Nós fizemos um livro que comentava o impeachment e esses juristas, também 100 pessoas das áreas jurídica, ciência política, sociologia, filosofia, antropologia, artes, que olharam para o Brasil para ver o que estava acontecendo, não apenas esse momento da Lava-Jato, mas também conectando com o momento político da crise institucional e política do ano passado, do fim do impeachment, que, pra mim, é claríssimo, um impeachment sem crime, a forma como ele aconteceu. Então, esses juristas já se manifestaram. Alguns vieram ao Brasil, inclusive, no Tribunal pela Democracia, cuja vítima era a democracia e fizeram seu julgamento sobre o processo vivido pelo Brasil. E, novamente, em alguns artigos, nós temos artigos de juristas de fora escrevendo no livro, embora esse não fosse nosso foco, nós queríamos aqui gente que conhece a legislação brasileira e pessoas aqui de dentro.
Mesmo assim, nós vimos os jornais demonstrando que estão enxergando claramente a conexão persecutória que há nesse processo, um processo carente de provas é um processo sem provas. Então, não tem prova de corrupção e, por consequência, não há prova de lavagem de dinheiro, nesse caso, aquilo que poderia ser constitutivo do segundo crime acusado. Aí entra nos detalhes que nós já estamos cansados de debater, a questão do triplex não ter a materialidade do crime, não é dele o apartamento, ele não dispõe desse bem, não pode vender o bem, se ele quisesse. Enfim, é uma situação muito constrangedora, como eu dizia, e que está sendo percebida claramente no plano internacional. Os principais jornais têm identificado isso. Do El País até outros jornais da Alemanha, isso tem acontecido.
O interesse dos articulistas
Funcionou muito bem essa questão das novas formas de comunicação. Os grupos de juristas já pré-formados no Whatsapp e Telegram e também o fato de a gente fazer parte da frente Brasil de juristas pela democracia. Então, hoje, todos os juristas que estão conectados e querendo falar puderam fazer uso desse espaço. Todos foram convidados, nem todos tiveram tempo, nem todos se sentiram confortáveis, já que é uma matéria de Direito Penal. Mas, mesmo assim, em uma semana nós chegamos a mais de 100 artigos, é uma situação surpreendente. Chegaram recomendados, não foi uma chuva de artigos. Eu não diria encomendados, mas recomendados, porque a maioria deles têm um conhecimento, principalmente, da área de Direito Penal e de Processo Penal.
Eu, por exemplo, sou do Direito Internacional, pude abordar a questão pela ótica do sistema interamericano de direitos humanos, junto à colega Gisele Ricobom, mas a maioria deles é do Direito Penal. Eu tenho alguns temas, eu posso mencionar alguns títulos. Posso mencionar alguns autores, mas acho que nem seria adequado, são todos tão bons, que seria uma pena deixar alguns de fora. Mas eu acho que as temáticas são interessantes, por exemplo, a questão da competência do juízo no sentido competência jurídica, não há incompetência subjetiva, mas a competência jurídica é abordada em vários dos artigos, se o juiz era competente tendo em vista a temática dos crimes, conexos ou não, vinculados à corrupção na Petrobrás ou coisas do gênero, então isso é esmiuçado por vários autores. A questão do inconsciente do juiz, por que ele está fazendo isso, é uma coisa recorrente, então, é interessante também que mesmo no campo jurídico, muitos artigos trabalharam a questão psicológica. Tem um que o título é “Freud explica”, porque essa saga dessa vontade persecutória. E aparece em vários outros artigos a figura do juiz acusador. Então, lendo a sentença, isso ficou claro e também com a análise do processo. O devido processo legal também é trabalhado em vários artigos. Nós temos, e aí eu mencionei para você antes, o que aconteceu com nosso Direito, o que está acontecendo com o Direito em geral, com as garantias conquistadas em processo de democratização. Nós sabemos que a democracia é um processo, que sempre pode ser aprimorado. No Brasil, nós tínhamos uma sensação de que no campo jurídico nós tínhamos avançado bastante. Nós achávamos que estávamos seguros. Não cabe a ideia de exceção, ela não tem justificativa. E aqui não cabe a justificativa de que nós estamos combatendo um mal maior. A corrupção tem que ser combatida, nós estamos todos interessados nisso, porque é o mal de qualquer sociedade. Mas a ideia de corrupção sistêmica ligada a um bando de criminosos, ligada a uma vertente política que estava no poder e etc é de uma fragilidade e de uma inconsequência social muito grande. Porque isso faz terra arrasada em qualquer governo e não é porque é um governo de esquerda. Nós queremos destruir institucionalmente a ideia de partido, a ideia de governo? Seja quem for, seja um governo de direita, centro-direita, extrema-direita, esquerda, o que ganhamos instituindo o caos institucional? Então, a Lava-Jato, nesse aspecto, se afastou dos interesses, digamos, iniciais.
E tem uma entrevista do Jô Soares com aquele Dallagnol, aquele que alguns chamam de menino, eu acho que de menino ele não tem nada, acho que é muito grave o que ele faz com o país, nós temos que levar muito a sério, inclusive para poder mensurar o grau de responsabilidade desses meninos do Ministério Público, que de meninos não têm nada. Tem de homens que estão fazendo mal ao país, na má utilização da sua missão constitucional. Aquele powerpoint gravíssimo contra a figura de um réu, que traz consequências pessoais, psicológicas, a dona Marisa demonstrou isso. Marisa Letícia faleceu por conta da pressão que sofreu. Então, nós estamos correndo riscos, porque o devido processo não é apenas um princípio plasmado na constituição e no código penal do processo penal brasileiro, ele é uma forma. Não é apenas aplicação da norma, é aplicação justa da norma, é aplicação digna da norma. Não adianta aplicar o Direito, precisa aplicar o Direito com responsabilidade, dignidade, conexão com o critério de justiça, é diferente de aplicar o direito, e ainda mais o direito de forma ampla, para combater a corrupção. Não é assim. E nós estamos com risco, realmente, de comprometimento – já está, né – da imagem de um homem público, que guarda em si a esperança de milhares de pessoas, que estão agora demonstrando intenção de voto, por exemplo, caso ele fosse candidato à presidência da República. Se nós tivéssemos um juízo que leve em consideração as consequências das suas decisões para além de um caso concreto… É isso que temos que levar em consideração. Ou isso também não é parte de um critério de justiça?
Então, o que está em risco é muito grave. Vários artigos estão preocupados com a convicção psicológica de um magistrado que se põe a serviço do descompromisso com um critério de justiça. Poderíamos ir além, não vem ao caso aqui discutir outras decisões e outras sentenças, mas esse modelo de combate à corrupção no Brasil está todo equivocado, nós estamos combatendo a corrupção destruindo as empresas brasileiras, as empresas nacionais, setores da economia. Tem alguns jornais que denunciam isso, gosto das análises do Luís Nassif quando fala isso, por exemplo. Qual é a consequência dessa forma de combate à corrupção, do uso desse sistema de delação premiada, que leva o delator, que confessa seu crime, ao extremo psicológico? É uma espécie de tortura isso, tem sido dito isso, isso é inadmissível, nunca aconteceu no Brasil. Então, nós estamos inaugurando um novo tipo de Direito Penal, que se distancia das garantias individuais. Isso é grave só contra os crimes de colarinho branco? É grave também. Quer dizer, só porque são crimes de colarinho branco nós vamos flexibilizar? Isso, por acaso, não é uma sentença que vai ser seguida naquilo que ela vai abrir com permissividade de seletividade, de autoritarismo, de juízo persecutório, isso não vai abrir espaço para outros tipos de perseguição também ou de utilização por outros juízes em instância monocrática pra fazer a mesma coisa, com outros réus?
Consequências para a justiça
Bom, a consequência maior é o exemplo que ele dá. Isso é evidente quando ele próprio se coloca como tal. Quando ele foi a um programa de televisão de ampla audiência, como o Fantástico (aquele dia eu fiquei realmente chocada), falar com a população. É um juiz que se coloca como exemplo, no mínimo. Então, no momento em que ele julga, o seu julgamento também será levado em consideração como exemplo. Para o judiciário também. Nós temos legiões de juízes que têm o juiz Sergio Moro como exemplo a ser seguido. Então, não é um caso normal, esse do caso Lula (a gente chama de “o caso Lula” porque são vários processos que estão em andamento formando um todo, que pode ser chamado de caso Lula, como a defesa do presidente tem chamado). Isso é muito preocupante, porque o juiz do caso, o magistrado, tem que ter muita responsabilidade. Suas decisões, por ele mesmo assim desejadas, são exemplos a serem seguidos. Se ele é autoritário, como tem sido identificado por vários juristas de grande renome no país, ele levará consigo esse exemplo de autoritarismo e da possibilidade de autoritarismo, que muitas vezes o silêncio das instâncias superiores tem corroborado com essa quase autorização para esse modo de julgar. Isso é gravíssimo.
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