"Faltam às forças democráticas e às forças de esquerda em particular, capacidade de análise e de formulação das suas visões e propostas em termos acessíveis à massa da população. A única liderança que tem capacidade de discurso que chega a todo o povo é o Lula", avalia o cientista político Emir Sader em sua coluna no Brasil 247
2 de janeiro de 2020, 11:22 h Atualizado em 2 de janeiro de 2020, 11:29
(Foto: Edilson Junior)
Que os brasileiros valorizem cada vez menos a democracia é uma grande vitória da direita e uma grande derrota para as forças democráticas. A direita governa contra a democracia, estreitando suas margens, atacando seus valores, exercendo o poder de forma autoritária, liberando as polícias para o uso indiscriminado da força contra a população mais pobre. Ela age sistematicamente para degradar a democracia, para promover formas de ação e valores vinculados à ditadura, à tortura, à morte, à violência.
O povo não costuma valorizar a democracia porque ela não lhe trouxe muitas coisas. Na saída da ditadura, o governo Sarney foi um misto de continuidade do velho regime e de elementos novos, que esgotou o impulso democrático que vinha da resistência à ditadura.
Foi retomada a democracia liberal no seu sentido institucional – separação de poderes, eleições periódicas, direito de organização de partidos, de movimentos sociais, liberdade formal de expressão. Mas nenhuma reforma estrutural foi levada a cabo. A concentração do poder da terra, dos bancos, dos meios de comunicação, foi incrementada e não democratizada.
Foi por meio de eleições democráticas que os governos neoliberais de Collor e de FHC se instauraram e promoveram os interesses do capital financeiro, em detrimento dos direitos da massa da população. A democracia não tinha representado mudança das condições de vida da população em relação à ditadura. O povo brasileiro não tinha por que valorizar a democracia.
Foram as eleições de 2002 a 2014 que instauraram governos que promoveram prioritariamente os interesses da massa da população, demonstrando que a democracia tinha sido o caminho para essas melhorias. Melhorias nas condições de vida, com dezenas de milhões de empregos com carteira de trabalho, com aumento dos salários sempre muito acima da inflação, com extensão da educação pública, com melhoria das políticas de saúde, com políticas sociais que melhoraram as condições de vida de toda a população mais pobre, que nunca tinha sido contemplada.
O povo votou maioritariamente nos candidatos a presidente que davam continuidade a essas políticas, em disputa com os que representavam os governos da década anterior, que não tinham contemplado os interesses da massa da população.
Mas o sistema político herdado não foi modificado, nem na forma de campanhas e de eleições, nem no funcionamento do Judiciário e dos meios de comunicação. A liderança do Lula promovia os interesses do povo, pregando a prioridade das políticas sociais, a identidade nacional do Brasil, a imagem do país no mundo, o orgulho de sermos brasileiros, a superioridade da democracia sobre a ditadura, a extensão dos direitos para todos – mulheres, negros, jovens, indígenas, LGBTs.
A democracia se fortaleceu, surgiu aos olhos da população como um sistema que a representava, com governos legítimos, que ouviam e falavam ao povo. Governos que respeitavam os direitos e as opiniões dos que se opunham a esses governos e dos que discordavam de suas políticas. Se governava para todos, com prioridade para os mais frágeis, os mais necessitados, para a grande maioria, que vive do seu trabalho. Governar democraticamente aparecia como cuidar dos mais necessitados, como defender os interesses do Brasil, como representar toda a população.
Mas ao não estender a democracia a instancias como o Judiciário e os meios de comunicação, foi se permitindo que a direita se recompusesse e retomasse a ofensiva contra os governos democráticos, preparando sua derrubada. A nova estratégia da direita se apoia nessas instâncias para judicializar a política, perseguindo com toda a arbitrariedade, governantes eleitos pelo voto popular e impedindo sua eleição. A direita transformou a democracia liberal numa armadilha para derrotar por meio de golpes os governos democráticos e instaurar governos antidemocráticos, que defendem os interesses derrotados sucessivamente em quatro eleições e que teriam sido derrotados novamente, não fossem as monstruosas manipulações nas eleições de 2018.
A disputa na opinião pública foi revertida da prioridade das políticas sociais, dos valores democráticos e dos interesses nacionais, para a restauração dos interesses do capital financeiro, dos valores antidemocráticos e da renúncia à soberania nacional. O país passou a viver os piores anos da sua vida, desde a ditadura. Com cânones democráticos supostamente preservados, segundo a pregação reiterada dos meios de comunicação.
A democracia não se tornou um valor universal. Para o povo, sem a consciência do que era efetivamente democracia, acreditando que uma forma de democracia, com partidos políticos, eleições, liberdade de expressão, etc., sobrevivia. Não havia como valorizar a democracia se, supostamente, haviam piorado radicalmente de vida, dentro da democracia. Viram seu principal líder ser preso e condenado, impedido de ser eleito de novo presidente do Brasil, dentro da democracia.
As forças democráticas foram incapazes de promover a consciência democrática na massa da população. Partidos, movimentos sociais, meios de comunicação alternativos, não encontraram o discurso que possa diferenciar a democracia do regime pervertido em que a direita a transformou. O povo não chegou a ter consciência de que sua vida mudou fundamentalmente porque a democracia foi rompida.
Faltam às forças democráticas e às forças de esquerda em particular, capacidade de análise e de formulação das suas visões e propostas em termos acessíveis à massa da população. A única liderança que tem capacidade de discurso que chega a todo o povo é o Lula, que precisa ser apoiado e fortalecido com análises que permitam que seu discurso se atualize e amplie os temas contemporâneos.
Os discursos dos partidos e movimentos tenderam a se concentrar nas denúncias das ações e da natureza do governo atual. As mídias alternativas também, preterindo analises. As publicações se concentraram, em grande medida, em instant books, incapazes de captar a dimensão dos fenômenos, concentrando-se em temas efêmeros.
O resultado foi deficiente para as forças democráticas, incapazes de disseminar um amplo sentimento democrático por toda a sociedade, justamente no momento em que os valores democráticos e os direitos da grande massa da população são vilipendiados e atacados diariamente pelo governo.
“E agora, Brasil?” Um livro com esse título, lançado recentemente, procura justamente levantar os faróis da visão da esquerda, elevar as reflexões mais além das conjunturas, propor análises do passado recente, do presente e do futuro, com perspectivas estratégicas e programáticas. Foi organizado por mim, com textos do Lula, do Leonardo Boff, do Fernando Haddad, do Guilherme Boulos, da Gleisi Hoffman, do Roberto Requião, um texto meu, do Jose Luís Fiori, do Luís Gonzaga Beluzzo, do Jair Ferreira, do Ricardo Lodi, da Clara Averbuck, do Serio Amadeo, do Paulo Moreira Leite, do Joaquim de Carvalho, do Eduardo Fagnani e do Luís Gomes de Moura. Foi publicado pela Editora do LPP e pretende promover por todo o Brasil debates sobre temas como a democracia, a soberania, a natureza da crise atual, os desafios da esquerda, um projeto de país soberano e democrático, o futuro do Brasil, os bancos públicos, o sistema de Justiça, a situação das mulheres, a internet, a resistência política, a comunicação alternativa, a cidadania social, o campo, entre outros.
O livro pode ser adquirido em livrarias como as da Uerj, no Rio, a Martins Fontes, em São Paulo, a livraria da Editora da Universidade Federal do Paraná, em Curitiba, a da Universidade Federal do Pará, em Belém. O livro pode também ser adquirido pelo e-mail eduerj.comercial@gmail.com ou pelos telefones 21 2334-0720 ou 21 2334-0721.
A resultado dessa pesquisa sobre a democracia aumenta as responsabilidades de quem tem capacidade de influência na opinião pública e, especialmente, na consciência social do nosso povo. A dimensão ideológica, dos valores, os debates sobre a democracia, o Estado, o Brasil como país, os projetos de futuro – são os decisivos para o futuro do país e exigem de nós o melhor que possamos dar.
Fonte: https://www.brasil247.com/blog/e-agora-brasil-h4wmdgs5
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