© AP Photo / Mark Schiefelbein
Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialista explica que o modelo chinês combina ações para dentro e para fora da China, de forma a fortalecer os elementos da cultura chinesa e filtrar a entrada de influência estrangeira no país.
Que a China é uma potência econômica não há dúvidas. O país, que décadas atrás registrava um alto índice de pobreza e cujos produtos eram considerados de má qualidade, conseguiu reverter essa situação e hoje é um ator global crucial para a estabilidade da geopolítica e da economia mundial.
Nos últimos anos, Pequim tem obtido outro sucesso: fazer da cultura chinesa um elemento crucial para o soft power chinês, quebrando a hegemonia do estilo de vida ocidental, propagandeado por EUA e Europa. O feito faz parte de um esforço do governo do presidente chinês, Xi Jinping, que recentemente mencionou a diplomacia cultural chinesa como um instrumento fundamental da política externa. O objetivo é aproximar a China de outros povos por meio de seus valores.
Para entender qual a fórmula do sucesso da diplomacia cultural chinesa, o podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, conversou com Paulo Menechelli, membro fundador da rede Observa China e autor do livro “Diplomacia cultural chinesa: instrumentos da estratégia de inserção internacional da China no século XXI”.
Qual a diferença entre soft power e hard power?
Menechelli lembra que os conceitos de hard e soft power foram criados pelo cientista político americano Joseph Nye. Enquanto o hard power abrange poderio militar e econômico como método de convencimento, o soft power usa elementos culturais e de consumo. Ele cita como exemplo os elementos usados pelos Estados Unidos.
“O conceito de soft power para [Joseph] Nye, ele é derivado da cultura, quando os países olham a sua cultura e falam ‘Nossa, que legal essa cultura, quero fazer igual, quero seguir esse país, quero ser como ele, quero tomar Coca-Cola, quero assistir cinema de Hollywood e jogar pôquer’.”
Quando a China começou a investir em soft power?
Menechelli afirma que o grande marco para o investimento massivo da China em soft power foram os anos 2010, na esteira das Olimpíadas de Pequim, em 2008.
“Esse processo de atração de grandes eventos internacionais é tradicionalmente uma forma de exercer poder brando, exercer soft power, o Brasil faz isso também. É uma forma muito tradicional, muitos países do mundo fizeram isso, as Olimpíadas têm esse elemento bastante marcante.”
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Ele afirma que Pequim decidiu elevar o investimento em soft power por considerar que o país não conseguiu “usar tão bem aquele capital que teve com as Olimpíadas”. Isso porque, embora tenha empregado esforços para construir o estádio Ninho do Pássaro e para realizar cerimônias de abertura e encerramento marcantes, o evento acabou ficando marcado internacionalmente por protestos.
“Tinha a questão do Tibete, tinha a questão do Dalai Lama, tinha uma série de questões políticas […] [para as quais] a mídia ocidental teria dado mais atenção […] do que a verdadeira mensagem que a China queria passar, na interpretação chinesa, […] com as Olimpíadas, uma ideia de superação, de união e tudo mais, de desenvolvimento que a China queria mostrar para o mundo.”
Ele afirma que a partir daí a China passou a investir “muito pesado nas suas mídias no exterior”. “Em 2012, por exemplo, tem a abertura de um escritório da CCTV [sigla em inglês para Televisão Central da China] […], que é a grande televisão da China, no Quênia, em Nairóbi, então [é colocada em prática] a ideia da CCTV África, começa a abertura de uma relação mais próxima com a América Latina, por exemplo. Mesmo nos Estados Unidos há uma ampliação de presença da mídia [chinesa].”
O especialista acrescenta que o objetivo de Pequim era seguir a cartilha de países do Ocidente, que costumam gastar uma alta quantia para promover sua cultura no exterior, e cita como exemplo a Aliança Francesa, “que tem mais de 120 anos e é um instituto pensado para promover o francês, para promover a cultura francesa, e teve um gasto muito grande por parte do governo francês para isso”.
“São gastos mais tradicionais e, talvez por isso, até mais visíveis para a gente no Ocidente, que está mais acostumado a lidar com essas outras presenças todas, mas a China tem investido muito, de forma constante e crescente.”
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De acordo com Menechelli, embora ainda não consiga competir igualmente com a indústria cinematográfica americana, a China tem conseguido sucesso em investimentos de firmas privadas, como a Huawei e a Tencent, dona do TikTok, e de jogos eletrônicos famosos, como League of Legends. Ele afirma que isso leva ao desenvolvimento de marcas, um elemento importante do soft power.
“Se eu precisasse falar de bate-pronto uma bebida da China, talvez eu tivesse dificuldades. Mas uma marca de tecnologia a gente já começa a falar com mais facilidade […]. Então eu acho que esses são todos elementos que mostram que a China vem investindo com constância e de uma forma crescente também [em soft power].”
Qual o objetivo do Instituto Confúcio?
Ele acrescenta que outra arma do soft power chinês são os institutos Confúcio, que são dedicados à divulgação da cultura chinesa e que ampliaram sua presença em vários países a partir de 2004, em especial nos Estados Unidos. Porém Menechelli afirma que os Estados Unidos passaram a reagir à presença chinesa por entender se tratar de uma ameaça contra sua hegemonia.
“Eles [a China] tinham 500 institutos Confúcio no mundo todo, […] quase 130 estavam nos Estados Unidos, então [os EUA] eram o lugar de destino principal. Mas, principalmente durante o governo [Donald] Trump, houve um fechamento em massa de institutos Confúcio por uma questão política mesmo, por um enfrentamento que estava acontecendo ali, político, com relação à China, uma desconfiança generalizada com relação a pessoas chinesas, inclusive com discursos bastante preocupantes e até mesmo xenofóbicos do [então] presidente dos Estados Unidos […], e houve um fechamento de 100 desses 130 institutos Confúcios; sobraram 30.”
Ele afirma que o mesmo ocorreu com veículos da mídia chinesa, que passaram a ser acusados de serem veículos de propaganda. Essa tendência, no entanto, poupou o cinema.
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“Por que o caso do cinema é diferente? Porque a China é o maior mercado cinematográfico do planeta. Então desde 2016 a China tem a maior quantidade de salas de cinema do mundo, e desde 2020 a China é o maior mercado cinematográfico do planeta em número de bilheteria mesmo, em valor de bilheteria. E isso faz com que Hollywood dependa muito do mercado chinês.”
Como funciona o sistema da China?
Menechelli explica que uma das marcas do soft power chinês é a presença muito forte do Estado na promoção de seus instrumentos.
“[Joseph] Nye, por exemplo, que é quem cria o conceito [de soft power], ele fala que há muito Estado no soft power chinês e por isso o soft power chinês não faz tanto sucesso fora da China. Segundo ele, o que o Estado chinês poderia fazer para crescer, fomentar o soft power da China, seria sair do caminho e deixar a própria sociedade civil se manifestar, porque, para ele, tudo de soft power é um pouco derivado da sociedade civil. O que gera algumas críticas direcionadas a Nye, porque valores políticos e política externa, principalmente, são esferas onde há uma presença muito grande do Estado. Convenhamos que a política externa é majoritariamente estatal, principalmente nos Estados Unidos.”
O especialista acrescenta que “de toda forma, na China, o Estado está presente em quase todas essas dinâmicas, inclusive na cultura”.
“E isso nos leva, talvez, para o último grande marco que diferencia o soft power chinês, que é essa ideia de um soft power de mão dupla, soft power tanto para fora quanto para dentro.”
Segundo Menechelli, a China percebeu a importância de promover o soft power de maneira interna após o exemplo da Alemanha Oriental.
“[Joseph] Nye fala no livro dele, um dos iniciais, […] ele fala que antes de o Muro de Berlim ter sido derrubado pelas marretas, ele já havia sido perfurado pela cultura dos Estados Unidos. Então os alemães de Berlim Oriental já dançavam como Elvis Presley, […] já tinham sido contaminados pela cultura estadunidense”, explica Menechelli.
“Quando esses textos [de Joseph Nye] são traduzidos […] para a China, boa parte dos analistas chineses viu ali inclusive uma cartilha, falando […] ‘A gente tem que evitar que isso aconteça na China'”, complementa.
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O especialista aponta que, dessa forma, a China criou mecanismos para controlar o fluxo de entrada de elementos de cultura estrangeira no país, especialmente aqueles considerados de potencial desestabilizador.
“Ele [soft power chinês] coíbe a entrada [no país], ele determina o que pode entrar, e ao mesmo tempo ele também tenta fazer um fortalecimento daquilo que deve ser mais divulgado ou não, ou daquilo que tem apoio governamental. Então filmes, por exemplo os filmes que são exibidos, produzidos, filmados e que vão ao cinema na China, todos eles têm que ter o selo, o selo do dragão, que é o selo de aprovação oficial do governo.”
Segundo Menechelli, essa “mão dupla do soft power [chinês]” é difícil de pensar do ponto de vista de uma análise de política internacional, mas faz muito sentido do ponto de vista chinês, dado o histórico do soft power norte-americano.
“A China viu nisso um alerta para a importância de se proteger contra esse imperialismo cultural [dos EUA].”
Ele afirma, no entanto, que “a China nem de longe é o único país que fez ou faz isso” e ressalta que “há algumas análises de implementação de cota de tela em países europeus, inclusive para coibir a presença massiva de Hollywood logo no pós-Segunda Guerra”.
“Enfim, tem muita coisa. O próprio fortalecimento na Coreia do Sul, por exemplo, da indústria cultural se dá no final da década de 1980, quando havia uma rejeição dessa presença massiva da cultura estadunidense ali e se queria proteger e fomentar a indústria local. Há muito disso. Não é só a China que faz isso, mas, de novo, a dimensão chinesa talvez nos chame a atenção para isso e nos faça ver essa ideia da utilização do soft power com mais interesse do que só o conceito original.”
Como o soft power do Brasil entra na China?
Questionado sobre se a cultura brasileira consegue permear as barreiras do “soft power para dentro” da China, Menechelli afirma que um dos exemplos mais clássicos é a introdução da bossa nova no país, mas também cita avanços após eventos internacionais como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Ele aponta ainda as novelas brasileiras, em especial “Escrava Isaura”, que ele afirma ter feito grande sucesso na China.
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“‘Escrava Isaura’ fez um sucesso estrondoso na China. E até hoje as pessoas mencionam ‘Escrava Isaura’. Quando você vai falar lá, vai falar com algum diplomata chinês, o cara tem uma chance muito grande, depois que você falar que é do Brasil, de mencionar ‘Escrava Isaura’.”
Ele acrescenta que a dupla sertaneja Milionário e José Rico também fez grande sucesso no país, com a música “Nessa Longa Estrada da Vida”, que ganhou destaque na China por conta do filme brasileiro “Na Estrada da Vida”, de Nelson Pereira dos Santos, do qual é trilha sonora.
“A China ficou muito tempo fechada para o cinema hollywoodiano, mas vinham filmes estrangeiros, principalmente de países que tinham algum alinhamento, ou filmes que tinham um alinhamento com aquela ideologia ali. E um cinema de contracultura no Brasil, enfim, o Cinema Novo e tal, que era um cinema que mostrava outros tipos de narrativas, foi considerado ali [na China] naquele momento”, explica Menechelli.
“O filme [Na Estrada da Vida] fez muito sucesso, e a história daqueles dois caras em um caminhão […] repercutiu na China. O Milionário e o José Rico vão para a China, e foram feitas muitas matérias interessantes sobre isso. Se você der um Google, você consegue sempre achar Milionário e José Rico na China. Eles começaram a fazer shows lotados, e até hoje o pessoal da China menciona o Milionário e o José Rico”, acrescenta.
Em contraponto, ele destaca que a China também vem ampliando a presença no Brasil, e cita como exemplo a plataforma de exibição gratuita de filmes ChinaZone, que foi lançada há dois anos no país.
“A gente tem um monte de mostras de cinema da China no Brasil, que é muito legal. […] mas a gente quer ver também, cada vez mais, a cultura brasileira na China de uma forma mais organizada. Assim como a China se dedica muito à sua diplomacia cultural, à promoção do seu soft power, é importante que isso se dê do lado brasileiro também”, explica Menechelli.
Ele acredita que o Brasil recentemente passou por um período de desvalorização da cultura, que contou com a extinção do Ministério da Cultura, mas que agora o país vivencia a retomada do incentivo à cultura.
“Imagina o que seria a promoção da cultura brasileira no exterior, quando se desconsiderava a importância da cultura dentro do Brasil, inclusive. Mas agora que a gente volta a ter uma valorização da cultura, quem sabe não seja o momento, de novo, de investir nessa promoção da cultura brasileira no exterior, na valorização da cultura brasileira”, conclui o especialista.
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