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quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Enzo Traverso: Bolsonaro é um presidente em guerra com o pobre e submisso ao capital financeiro


O historiador italiano Enzo Traverso definiu Jair Bolsonaro assim: um presidente em guerra contra os pobres, submisso ao capital financeiro internacional e que usa a mentira nas redes sociais como base política para retratar uma realidade paralela.

1 de dezembro de 2021, 08:41 h Atualizado em 1 de dezembro de 2021, 08:53

Enzo Traverso e Jair Bolsonaro Enzo Traverso e Jair Bolsonaro (Foto: Reprodução/Youtube | REUTERS/Ueslei Marcelino)

Jacobin Brasil - Aos 64 anos, o italiano Enzo Traverso é uma estrela em ascensão. Ele mora nos Estados Unidos, onde ensina história política e intelectual na Universidade de Cornell e, embora não se entenda midiático, é um autor cujos livros escritos de maneira direta instigam o pensamento no caminho da compreensão geopolítica e da ação crítica.

Historiador, Traverso não teme tocar nas feridas do presente. Ele constata um momento “pós-fascista” internacional, que seria caracterizado não exatamente pelo nacionalismo, marca de um fascismo antigo, mas pela submissão às leis financeiras internacionais. Mais que isso, o descompromisso com os fatos seria o fundamento de ação dos pós-fascistas, enquanto, para o fascismo clássico, imaginar um futuro grandioso embasava a ação política.

Suas palavras para o Brasil atual são aterradoras. Um presidente como Jair Bolsonaro, abertamente submisso ao capital financeiro e espelhado na ditadura civil-militar, seria, segundo Traverso, mais do que um pós-fascista, antes um neofascista liberal que exerceria um populismo personalista, trabalharia para a extinção do pobre e exerceria o racismo sem pudor, enquanto a extrema direita europeia, por comparação, ainda precisaria instigar o pavor ao Islã para implantar sua xenofobia.

A jornalista Rosane Pavam conversou com ele sobre o papel dos intelectuais hoje, o perigo e o poder das redes sociais e como o seu novo livro pode explicar o que vem acontecendo no Brasil.

Em seu livro As novas faces do fascismo: populismo e a extrema direita (editora Âyiné, 2021), você propõe intitular o momento presente de pós-fascista, já que a extrema direita assume o poder em alguns países sob novo formato, ainda em desenvolvimento. Mas chamá-lo de pós-fascista não diminuiria sua força?

A extrema direita é uma constelação muito variada e tem características distintas em diferentes países. Na Europa, distanciou-se do fascismo e sua ascensão depende em grande parte de sua capacidade de aparecer como uma alternativa – nacionalista, conservadora e xenófoba, mas ainda uma alternativa – às políticas neoliberais da União Europeia e do Banco Central europeu. Quando entra no governo, ela busca a mediação, mas seu perfil não é neoliberal. No Brasil, a situação é diferente: Bolsonaro afirma sua filiação à ditadura militar e sua política é abertamente neoliberal. No Brasil estamos diante de uma forma específica de neofascismo neoliberal ou neoliberalismo fascista.

O Brasil de Jair Bolsonaro de algum modo evocaria a Itália de Benito Mussolini?

O populismo, o estilo demagógico, os comportamentos transgressivos são típicos de uma certa retórica fascista. Sob muitos pontos de vista, Bolsonaro lembra Mussolini, mas esses são aspectos formais, externos. Mussolini não era um agente do capital financeiro, ele havia integrado o capitalismo em seu projeto de expansionismo militar, colonial, e lançou uma campanha contra a Liga das Nações que impôs sanções econômicas à Itália fascista após a guerra na Etiópia. Bolsonaro defende uma política neoliberal e uma guerra contra os pobres, se considerarmos suas políticas públicas em termos de saúde, educação e serviços sociais. Seu autoritarismo não é apenas nacionalista, mas abertamente fascista.

Nesta sociedade pós-fascista, as redes sociais têm feito usuários acreditarem em “verdades” que não passam de falsidades, às vezes muito evidentes. Como um absurdo desses pôde se estabelecer?

Em sua vigência, o fascismo fez “sonhar” e pintou um futuro mítico. Hoje, o pós-fascismo é incapaz de projetar a sociedade no futuro – seu imaginário não tem uma dimensão “prognóstica”. Mas ele inventa uma realidade paralela que espalha pela mídia, cria enredos e transfigura seus inimigos, pintando um retrato que absolutamente não corresponde à realidade. Existe uma continuidade entre Bolsonaro ou Trump e o fascismo? Sim, seu traço comum são as mentiras, eles não suportam a verdade.

Seria possível propor uma regulamentação das redes sociais para o bem do regime democrático? Sob quais condições?

A regulamentação das redes sociais é um assunto delicado. Por um lado, é necessário: as redes sociais devem estar sujeitas às mesmas leis que regulam a imprensa escrita e a televisão na maioria dos países democráticos; não se pode mentir impunemente, insultar os adversários, inventar tramas. A ética da discussão exige regras em um país livre.

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Por outro lado, se um poder autoritário regula as redes sociais, o risco é censurá-las, amordaçá-las, como ocorre na China. Acho que existem duas soluções: por um lado, deveria haver órgãos de controle independentes do governo ou da presidência, não sujeitos ao poder político; por outro lado, deveriam existir leis contra o monopólio das redes de televisão, porque elas constituem uma alternativa às informações controladas pelo poder financeiro e político.

Você afirma que o secularismo é o caminho percorrido pela extrema direita para exercer o racismo contra os povos islâmicos na Europa. E que, portanto, o exercício da blasfêmia deveria ser evitado em países seculares. Por que a liberdade de blasfemar não pode ser preservada?

Nunca propus leis contra a “blasfêmia” ou contra a sátira. Sempre considerei as caricaturas do jornal francês Charlie Hebdo islamofóbicas, sexistas e racistas, mas jamais propus censurá-las. A sátira política é indispensável em um país livre. O problema é fazer bom uso dela. Defender a liberdade de expressão significa defender o direito dos inimigos de se expressarem livremente.

Caricaturas “blasfemas” são transgressivas e têm potencial crítico nos países muçulmanos, onde muitas vezes se veem censuradas e incomodam o poder. Nos países democráticos da União Europeia, as caricaturas contra a religião islâmica estigmatizam em muitos casos uma minoria, as classes populares, os imigrantes, os “diferentes”. Gostaria de estender o exemplo: a sátira contra o obscurantismo dos rabinos é divertida na imprensa israelense; na Alemanha nazista, ele apenas fez rir os antissemitas.

Você vê algum problema no crescimento das políticas identitárias?

Nada tenho contra as políticas identitárias se elas não forem concebidas como a reivindicação de identidades isoladas, separadas e incapazes de dialogar com os demais componentes da sociedade e as demais forças interessadas em uma transformação social e política. A solução não está na negação das identidades, mas na sua coexistência. O conceito de interseccionalidade permite que as identidades sejam articuladas em formas não hierárquicas, mas igualitárias, evitando que entrem em conflito. Identidades de gênero, classe e raça podem coexistir. Acredito que a noção de interseccionalidade é muito importante para um país grande como o Brasil, onde coexistem minorias e comunidades muito diferentes. Essa diversidade é sua riqueza.

Você se considera um intelectual midiático? Que problemas existem em trabalhar com a mídia atual?

Eu sou historiador e não estou muito na mídia de nenhum país. Certamente não sou um “intelectual midiático”. Mas acho que precisamos esclarecer o uso das palavras. O conceito de intelectual nasceu há mais de um século, na França, com o caso Dreyfus, e ao mesmo tempo em outros contextos linguísticos. Na época, os intelectuais eram uma elite, porque detinham o monopólio da expressão escrita, quando a grande maioria da população era excluída e a cultura era dominada pela imprensa. Régis Debray a define como a era da “grafosfera”, que terminou na década de 1960.

Hoje, graças à universidade de massa, a cultura não é mais monopolizada por uma elite. Além disso, vivemos agora na esfera do vídeo, onde a cultura é dominada pela imagem. Posso dizer que sou um intelectual, porque meu trabalho é ler, escrever livros e artigos e ensinar, mas certamente não poderia dizer que integro uma elite. Isso seria bastante ridículo. Os “intelectuais midiáticos” geralmente não são intelectuais, não exercem nenhum espírito crítico, são agentes da indústria cultural e gerenciam a comunicação do poder.

Como pode um intelectual exercer livremente a crítica para sensibilizar a população sobre seus problemas? Depois de Jean-Paul Sartre, o intelectual ainda deve alertar essas consciências?

Não quero idealizar Sartre, uma figura que deve ser historicizada e cujas contradições não podem ser ignoradas. Mas acho que o intelectual ainda tem um papel a cumprir: ele deve falar a verdade, por mais incômoda que seja, criticar o poder, defender os fracos e não se preocupar com a própria popularidade. Se esse é o papel do intelectual, no Brasil de hoje o intelectual só pode ser antifascista, antirracista e anticapitalista.

Fonte https://www.brasil247.com/brasil/enzo-traverso-bolsonaro-e-um-presidente-em-guerra-com-o-pobre-e-submisso-ao-capital-financeiro

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