Afonso de Albuquerque
Professor do Lamide UFF, Conselheiro Acadêmico da Rede Conecta
A face corporativa do Grande Irmão
Em nome do combate à desinformação, um gigantesco esquema de censura está sendo construído, no Brasil e no mundo
12 de março de 2022, 18:25 h Atualizado em 12 de março de 2022, 18:46
Youtube (Foto: Divulgação)
Quando falamos em censura, imagens familiares vêm à mente. Agentes ligados ao governo se instalam nas salas de redação dos meios de comunicação e decidem o que pode ou não ser publicado. Por vezes, o clima de intimidação promovido por esses agentes é tão grande que os próprios jornalistas exercem a autocensura, a fim de evitar punições e constrangimentos. Associamos esse tipo de censura aos regimes autoritários. Por vezes, a atividade da censura se espraia pela sociedade, de tal forma que a expressão individual dos cidadãos comuns também é atingida. No Brasil, o Estado Novo e a Ditadura Militar fornecem ilustrações concretas dessa dinâmica.
Nos últimos anos, contudo, assistimos à emergência de um modelo inteiramente novo de censura. Ele não é mais exercido primordialmente por agentes do Estado, mas por um intrincado sistema multissetorial que inclui plataformas de mídias sociais, a mídia comercial, think tanks, fundações ditas filantrópicas e agências de fact-checking. Instâncias governamentais também integram esse sistema, mas seu modo de atuação é inteiramente distinto da censura clássica. De fato, há dois tipos de governo envolvidos. Um deles é o governo nacional. Nesse caso, o agente envolvido é o Judiciário. Existe um outro tipo de governo envolvido no processo, contudo. Concretamente, o novo modelo de censura tem no governo dos Estados Unidos sua pedra angular.
Esse modelo de censura se justifica com base na necessidade de combater a distribuição de desinformação ou, numa versão mais popular, fake news. A premissa que sustenta o modelo é a seguinte: as mídias sociais criaram condições que permitiram a agentes mal-intencionados distribuírem informações falsas para desestabilizar as instituições políticas e promover o ódio. Isso é correto. A desinformação apresenta efetivamente uma séria ameaça à qualidade da nossa democracia. Isso tem sido demonstrado em diversos países. A desinformação intencional e sistemática efetivamente contribuiu para a ascensão de líderes políticos extremistas e inescrupulosos como Donald Trump nos Estados Unidos, Rodrigo Duterte nas Filipinas e, não menos importante, Jair Bolsonaro no Brasil.
O diagnóstico do problema é correto, mas o tratamento que se oferece para lidar com ele não. O modo como o governo lidou com a pandemia de Covid-19 no Brasil oferece um paralelo a esse respeito. O vírus da Covid-19 se revelou bastante letal e ceifou centenas de milhares de vidas no país. A abordagem do governo para lidar com o problema foi oferecer remédios sem eficácia comprovada para a população: hidroxicloroquina e ivermectina. Tais remédios não eliminavam os riscos do vírus e acrescentavam a eles um risco de morte adicional. A emenda saiu pior do que o soneto. Não é muito diferente com o aparato corporativo de censura que se constrói hoje, diante dos nossos olhos.
Todo sistema autoritário de censura se apresentou como um esforço para combater a desinformação. Podem ser “mentiras”. Podem ser “heresias”. Em todos os casos, os agentes da censura se apresentam como campeões da verdade. Não é diferente, nesse caso. O que distingue o sistema neoliberal de combate à desinformação é que ele atua de fora para dentro, do exterior para o Brasil. Ele não apenas inibe o livre debate, mas solapa a soberania nacional.
As raízes desse sistema são antigas. Elas remetem ao governo de Ronald Reagan que, em 1983, criou o National Endowment for Democracy (NED). Seu propósito era exportar o modelo de democracia para o resto do mundo. A iniciativa tem por base um sistema complexo de agências do governo – Departamento de Estado, Defesa, Setores de Inteligência – do mundo privado (incluindo a mídia comercial) do chamado terceiro setor e mesmo das universidades. Tomados em conjunto, esses agentes carimbam como “verdade” interpretações de interesse do governo dos Estados Unidos e agentes transnacionais à frente da globalização neoliberal.
O sistema ganhou um novo alcance com o desenvolvimento da internet e, em especial, das plataformas de mídias sociais. A internet surgiu nos Estados Unidos, em grande parte como um projeto militar. Os Estados Unidos estabeleceram a linguagem e controlam boa parte da infraestrutura tecnológica que serve de base ao debate global: Facebook, Twitter, WhatsApp, Youtube e outras mídias. Durante algum tempo, muitos acreditaram que essas tecnologias eram inerentemente benignas, aliadas dos cidadãos comuns na busca por mais liberdade. Os eventos que começaram em 2013 e levaram ao golpe de 2016 e à eleição de Bolsonaro em 2018 abriram nossos olhos para os perigos que se escondem por detrás das mídias sociais.
O que se apresenta agora, contudo, é um salto imenso na escala do perigo. As plataformas de mídias sociais estão se convertendo em agentes de censura do debate público, do modo mais descarado. A censura dos canais russos – Sputnik e RT – demonstram o quanto essas plataformas estão subordinadas à agenda do governo estadunidense. E não se trata de defender a mídia russa em si mesma. Criado o precedente, toda mídia, de qualquer país, pode ser censurada. De fato, isso já aconteceu com a mídia alternativa. Ainda mais grave, a nova lógica da censura atinge também os indivíduos comuns. Muitos têm sido assediados por emitirem opiniões que divergem dos interesses do Grande Irmão Corporativo.
As agências de fact-checking exercem um papel fundamental aí, designando certos discursos como “fake” e estigmatizando aqueles que os publicam como difusores de desinformação. É importante observar que essas agências não são independentes de modo algum. Elas mantêm relações próximas com a mídia corporativa e nunca checam o seu conteúdo. Ainda mais importante, elas se inserem em redes comandadas a partir dos Estados Unidos e que atendem ao interesse nacional desse país. Não se trata apenas de censura, mas de ataque à soberania do pensamento. No Brasil, o debate sobre a desinformação tem sido fortemente pautado por esses interesses. Um exemplo é a atuação do Atlantic Council, o think tank da OTAN no debate sobre o combate à desinformação. Em aliança com instituições acadêmicas e think tanks nacionais, o Atlantic Council tem formulado propostas que influenciam políticas públicas nacionais. Muitas decisões do Judiciário brasileiro relativas ao combate às fake news são informadas por essas propostas.
A Operação Lava Jato e o golpe de 2016 demonstraram, de maneira exemplar, o poder de atores estrangeiros em desestabilizar a democracia brasileira. Precisamos tirar lições do passado e nos prepararmos para combater ameaças futuras. Para tal é necessário que contemos com iniciativas que disputem o monopólio do Grande Irmão Corporativo na definição do que é fato e do que é fake. A luta é dura, mas temos os meios para travá-la. Contamos com pesquisa universitária de ponta no tema, capaz de instruir uma nova abordagem para o problema da desinformação, de viés não autoritário. Precisamos montar redes capazes de levar esse debate ao maior número de pessoas possível e prover os atores injustamente acusados de desinformados com meios para se defenderem.
Fonte: https://www.brasil247.com/blog/a-face-corporativa-do-grande-irmao
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