A lenta recuperação global após a pandemia e a nova configuração geopolítica devido ao conflito na Ucrânia têm elevado as preocupações no Ocidente com relação à economia dos EUA
22 de setembro de 2022, 21:02 h Atualizado em 22 de setembro de 2022, 21:37
Dívida pública dos EUA bate recorde e vai a mais de US$ 21 trilhões (Foto: REUTERS/Jo Yong-Hak)
Sputnik - Com dívida pública que já supera os US$ 30 trilhões e crescente elevação da taxa de juros, EUA ainda conseguem se financiar devido à força do dólar no mercado mundial. Especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil explicaram como funciona a cadeia monetária que beneficia Washington, cada vez mais questionada por outros atores econômicos.
A lenta recuperação global após a pandemia de COVID-19 e a nova configuração geopolítica devido ao conflito na Ucrânia têm elevado as preocupações no Ocidente com relação à economia dos Estados Unidos.
Isso porque Washington não tem demonstrado o mesmo fôlego de décadas passadas para ajudar a reativar a economia mundial, principalmente a de países dependentes do sucesso norte-americano.
Após queda de 3,5% em 2020 e a alta de 5,7% em 2021, o Produto Interno Bruto (PIB) dos EUA acumula dois recuos trimestrais consecutivos neste ano, de 1,6% (de janeiro a março) e de 0,9% (de abril a junho), aumentando o risco de recessão no país.
Em outra ponta, a dívida pública norte-americana segue com viés de alta. Segundo dados do Departamento do Tesouro, a dívida total do país é de US$ 30,9 trilhões (R$ 158,50 trilhões) e caminha para atingir US$ 31 trilhões (R$ 159 trilhões) ainda no mês de setembro.
Com um PIB em valores absolutos estimado na casa dos US$ 24 trilhões (R$ 123 trilhões) em 2022, a relação dívida/PIB do país tem girado em torno de 130% desde meados de 2020.
E a tendência, ao menos por enquanto, é que a dívida norte-americana continue subindo, já que, para tentar conter a escalada na inflação, o Federal Reserve (Fed), o banco central do país, aumentou as taxas de juros em 0,75% na última quarta-feira (21). Com o reajuste, o intervalo passa de 2,25% a 2,5% para 3% a 3,25%.
Diante desse cenário negativo para os EUA, economistas consultados pela Sputnik Brasil avaliam que o trunfo que sustenta a economia norte-americana continua sendo o dólar. Embora venha perdendo força, a moeda ainda é o principal meio de troca em transações internacionais, mantendo a relevância dos títulos da dívida pública norte-americana.
Segundo o economista Fábio Sobral, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), os EUA "negligenciam o aumento da dívida" porque sabem que ainda possuem o controle do alto endividamento, por conta de um sistema que lhe dá privilégios.
O especialista explica que o dólar funciona como um "mecanismo de financiamento", desde 1961, quando a moeda deixou de ser lastreada em ouro. Assim, segundo ele, Washington consegue imprimir dólares sem grandes preocupações de gerar inflação.
"Os EUA quebraram a obrigatoriedade de trocar o dólar por ouro, então, a dívida americana pode crescer sem esse controle. Já as dívidas de outros países são reguladas a partir desse mecanismo financeiro dos EUA", afirmou.
O economista aponta que os EUA "têm o privilegio de deter a emissão da moeda" que serve como base para transações entre todos os países, mas alerta que novos polos econômicos, liderados por China e Rússia, ameaçam quebrar essa cadeia hegemônica.
"Há um movimento que busca a desdolarização. Isso complicará muito a vida do endividamento eterno e ilimitado dos EUA. O endividamento é um mecanismo de profundo descontrole e instabilidade econômica do próprio capitalismo. Esses países [China e Rússia] tentam se livrar da instabilidade provocada pelo crescimento da massa financeira impagável, que os EUA criam permanentemente para ter o privilégio exclusivo de comprar e gastar sem ter que produzir", avaliou Sobral.
Efeitos do aumento da taxa de juros pelo Fed no mundo
Em um cenário de curto e médio prazo, a economista e professora da Fundação Getulio Vargas (FGV) Carla Beni não vê risco de crédito global com o aumento da dívida norte-americana.
"As finanças americanas não estão fora de controle, porque é uma dívida que está sendo gerenciada, aprovada pelo Congresso", diz a especialista.
Ela aponta que, quando os EUA sobem a taxa de juros, provocam um "impacto muito grande para o resto do mundo", mas não internamente.
"Se o título soberano americano, que é considerado o papel de menor risco no cenário internacional, remunera um valor maior, passa a haver pressão sobre a taxa de juros de países emergentes. O impacto no resto do mundo sempre é muito relacionado à elevação da taxa de juros do Fed", afirmou.
Em dezembro do ano passado, o Congresso norte-americano aprovou a elevação do teto da dívida do governo federal de US$ 28,9 trilhões (R$ 147,8 trilhões) para US$ 31,4 trilhões (R$ 160,6 trilhões).
A economista da FGV destaca que, recorrentemente, o Congresso norte-americano se reúne para aprovar o aumento do limite da dívida, independentemente do partido à frente do governo federal.
"Há que se considerar que a economia dos EUA está há décadas em um processo de guerra, que custa muito caro. Então, quanto mais guerra, maior é a despesa. Por isso, a previsão orçamentária pode vir a ser alterada ao longo do ano justamente por essas questões", explicou.
Critérios para dívidas dos outros países 'não valem para os EUA'
O economista Fábio Sobral, da UFC, aponta que o dólar e os títulos do Tesouro são os dois "papéis" que norteiam a economia do país.
Segundo ele, devido a essa força da moeda — cada vez mais questionada internacionalmente —, os EUA ainda têm certo privilégio em termos de capacidade para injetar dinheiro na economia.
"Para não inundar o mercado de dólares, os EUA podem imprimir títulos públicos e trocar por dólares, papel por papel. O dólar acaba funcionando como título público", indica o especialista.
Sobral explica que os EUA contam com alguns mecanismos para evitar que o dólar seja desvalorizado em grande quantidade velozmente, tais como "a elevação da taxa de juros e a interferência do BC norte-americano junto a grandes bancos centrais".
Com isso, destaca o especialista, os EUA conseguem manter outros países dependentes de suas orientações, sabendo que uma paralisação da máquina estatal norte-americana por conta do crescimento da dívida só ocorrerá mediante uma crise que afete a todos.
"Por isso, os critérios técnicos, econômicos e políticos para as dívidas dos outros países não valem para os EUA", afirmou.
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