Por Gilvandro Filho, do Jornalistas pela Democracia - Que país é este onde o seu Exército, que se jacta de ser o "povo fardado", resolve a bala uma suspeita, envolvendo pessoas inocentes e desarmadas, e chama o caso de "equívoco"? A 80 balas, melhor dizendo. O que houve no bairro de Guadalupe, no Rio de Janeiro, com integrantes da nossa Armada executando de maneira inexplicável o músico Evaldo Santos Rosa, é assassinato aqui e em qualquer lugar do planeta.
Foi um trucidamento. Não houve choque entre as partes, nem ordem descumprida, nem agressão que justificasse legítima defesa, como os militares tentaram, de início, se justificar até que a tese, cínica e indefensável, caísse por terra minutos após ser expelida. Havia uma família saindo de casa para um "chá de bebê". Mas, para quem sai de casa com arma na mão, protegido por uma corporação e achando que pode matar para defender a paz, o músico e seus parentes não poderiam ter cometido infração maior.
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Desculpa do "equivoco", para piorar as coisas, foi dada pelo porta-voz do governo, o general Otávio do Rego Barros, pela tevê. Até porque o presidente Jair Bolsonaro fez que não era com ele, nem com a corporação à qual pertenceu até ser expulso. Muito menos que tinha a ver com a presidência da República, cargo que ele ocupa, ocasionalmente, e que lhe confere o título pomposo de Comandante-em-Chefe. O semblante do general porta-voz dourando a pílula foi mais um desses episódios constrangedores que empurram para o fundo do poço a democracia brasileira, no atual governo.
Foi desrespeitoso com a família do músico assassinado. Tanto quanto foi a entrevista do ministro da Justiça, o juiz de primeira instância Sérgio Moro, ao programa do apresentador Pedro Bial, nesta madrugada, na Globo. Como se não bastasse a entrevista em si e sua voz de quem não tem certeza de nada do que está falando, Moro engrossou o coro da vergonha ao classificar a execução do Rio de Janeiro de "incidente". E tentou descartar, com razões pretensiosamente técnicas, qualquer ligação entre o fuzilamento e o seu "pacote anticrime" que inclui em seu teor uma famigerada "licença para matar".
Segundo Moro, " (O episódio) está em apuração pelo Exército". Assim sentenciou o ministro, sempre utilizando expressões como "aparentemente" ou "teria havido", uma prática de discurso titubeante de um juiz que não vacila na hora condenar por "causas indeterminadas".
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Esta foi, talvez, a parte mais incisiva, digamos assim, da amistosa entrevista. A parte com a questão sobre o Exército, por sinal, foi produzida à parte, pois a entrevista já testava fechada quando o assassinato ocorreu.
Abrindo só um parêntese, a entrevista seguiu morna e fofa. Foi Moro fazendo de conta que explicava tudo o que Pedro Bial fingia que questionava. Teve de tudo e quase nada, inclusive fatos da infância do entrevistado e suas decisões de seguir a carreira jurídica e, depois, de ingressar na política.
A maior parte do programa parecia, no jargão jornalístico, um "releasão", ou uma peça de propaganda, no popular. Os dois pequenos trechos sobre o ex-presidente Lula – a necessidade da condução coercitiva de Lula e os áudios de telefonemas entre Lula e Dilma – foram meio constrangedores, tanto pelas perguntas quanto pelas respostas. Nada a contribuir.
"Eu tenho falado que o caso do ex-presidente Lula pertence ao meu passado. Eu não gosto de ficar rememorando esses fatos", avisou preventivamente o ministro. E deu, burocraticamente, sua versão, sem novidades. Sobre o assessor Eriberto Queiroz, ex-assessor-pagador-amigo-irmão-camarada do senador Flávio Bolsonaro e as denúncias contra ele no Coaf – outro tema que poderia ser explosivo, mas deu "xabu" -, Moro voltou a fingir que aquilo não é com ele. E ficou assim mesmo. Entrevista repetitiva e desnecessária.
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Fechando o parêntese e voltando ao fuzilamento de Evaldo Rosa. Ao preferir analisar tecnicamente a questão, Sérgio Moro passou ao largo da sua condição de Ministro da Justiça, comportando-se como uma fonte que fala de passagem sobre um assunto qualquer.
Moro, todos sabem, é autor de um projeto anticrime que, entre outras coisas, autoriza policiais a matar e não ter que prestar satisfação. Basta dizer que foi em legítima defesa, alegar ação em serviço e cumprimento de ordem, e pronto. Seu superior, o presidente Jair Bolsonaro, não só corrobora a tese como é um defensor, há tempos, da eliminação de "bandidos".
O Brasil caminha para uma política de segurança que vai permitir matar, mesmo. Afinal, "bandido bom é bandido morto", diz a velha máxima utilizada à larga pela extrema-direita que respalda o grupo que abocanhou o poder em janeiro. Mesmo que o atingido pela bala justiceira seja somente um suspeito. Ou nem isso. Sendo pobre e negro, já é o suficiente para entrar na trágica contabilidade dos mortos "por equívoco" por parte da polícia.
Junte-se a isto a ação das milícias – sobretudo no Rio de Janeiro, por suas ligações com o poder atual. Mais a venda liberada de armas (quatro por brasileiro "habilitado") determinada pelo rearmamento, primeira ação do governo Bolsonaro, com dois dias de mandato. Pronto. Está montado o cenário da guerra civil. Sonho dos armamentistas, da indústria de armas e da maior parte dos eleitores que colocaram este pessoal no governo.
Sobrou para Evaldo Santos Rosa. Pode sobrar para você.
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