Ex-número um do Mercosul, o diplomata Samuel Pinheiro Guimarães nega, em
entrevista ao jornal argentino Página 12, que Lula e Dilma tenham implantado uma
diplomacia 'ideológica' e adverte, contra as propostas do chanceler interino,
José Serra, que "o centro da politica externa brasileira tem de ser a América do
Sul; na América do Sul, o Mercosul; no Mercosul, a Argentina. Não compreender
isto significa enorme miopia e cultivar o fracasso"; para ele, o governo
interino de Michel Temer "é o resultado de uma conspiração"
31 de Maio de 2016 às 12:34
Por Martin Granovsky, da Página/12
Martin: O governo Temer é legitimo?
Samuel: O Governo, interino, de Michel Temer é o resultado de uma conspiração
de que participaram, de forma coordenada, os políticos envolvidos em denuncias
de corrupção; os políticos e partidos de oposição, como o PSDB, inconformados
com a inesperada derrota, por estreita margem, nas eleições de 2014; os
políticos e partidos conservadores, do ponto de vista social, como os
evangélicos; os meios de comunicação, em especial o sistema Globo, com dezenas
de estações de televisão, de rádios, jornais e revistas; o Poder Judiciário,
desde o Juiz Sergio Moro, messiânico e disposto a praticar em sua luta contra a
corrupção atos ilegais de toda ordem, aos Ministros do Supremo que, podendo e
devendo, não o disciplinaram; os interesses estrangeiros que viram, nas
dificuldades econômicas, oportunidade de reverter políticas de defesa dos
capitais nacionais para promover a redução do Estado e a abertura aos bens e
capitais estrangeiros, como o caso da Petrobras, das riquíssimas jazidas de
petróleo do pré-sal, do Banco do Brasil e do BNDES; do mercado financeiro, isto
é, dos grandes investidores e milionários que são os 71.440 brasileiros cuja
renda mensal média é de 600 mil dólares; dos rentistas, temerosos de uma
politica de redução das taxas de juros; das associações de empresários como a
FIESP, a FEBRABAN, a CNI, a CNA ; dos defensores de políticas de austeridade que
visam a redução dos programas sociais, revisão dos direitos dos trabalhadores,
equilíbrio fiscal pela redução do Estado, dos programas sociais, dos
investimentos do Estado, da fiscalização dos abusos de empresas; e, finalmente,
dos deputados, senadores, economistas e jornalistas, intérpretes, porta-vozes e
beneficiários destes interesses.
A presidente Dilma Rousseff foi afastada por uma Câmara de Deputados sob a
presidência e o comando do notório Deputado Eduardo Cunha, corrupto e afastado,
logo em seguida, pelo Supremo Tribunal Federal, que poderia tê-lo afastado
antes, e depois por uma Comissão de Senadores e agora, afastada, aguarda
resultados da Comissão do Senado e da votação pelo Plenário do Senado que
julgará seu impeachment. Neste processo, centenas de deputados e senadores,
acusados ou processados por corrupção, votaram pelo processo de impeachment, sem
que houvesse nenhuma prova de ato ilícito praticado pela Presidente Dilma.
367 Deputados e agora, eventualmente, 54 Senadores, representantes dos mais
conservadores setores sociais, dos indivíduos mais ricos em uma das sociedades
mais desiguais do mundo, dos interesses estrangeiros mais vorazes, poderão
anular o resultado de eleições em que 54 milhões de brasileiros escolheram a
Presidenta Dilma Rousseff e a continuidade de um projeto de desenvolvimento
social, econômico e politico do Brasil que se iniciou em 2003, e derrotaram um
projeto neoliberal, submisso e reacionário.
A composição do Ministério indicado por Michel Temer, suas ligações
ostensivas, e manifestadas publicamente pelos próprios Ministros, com os
interesses econômicos e conservadores e as acusações de corrupção que sobre eles
pesam indicam perfeitamente o caráter da conspiração que derrubou Dilma
Rousseff, cujo objetivo final é a recuperação total do poder nas eleições de
2018.
Martin: Quais chances de Dilma não ser afastada definitivamente, e
quais fatores condicionam estas chances?
Samuel: Ainda há grandes possibilidades da Presidente Dilma não ser afastada
definitivamente já que o número de Senadores que devem votar pelo seu
afastamento é de 2/3, isto é, 54 Senadores em um total de 81.
As manifestações populares, de personalidades e setores significativos contra
o governo Temer e seus atos, a favor da democracia e contra o golpe, tem sido
cada vez mais amplas e intensas, apesar de a grande imprensa procurar ocultá-las
e minimizá-las.
Os elementos fundamentais para evitar o impeachment são a participação do
Presidente Lula á frente das manifestações populares, a resistência a cada
iniciativa do governo interino apresentadas ao Congresso e a mobilização e
coordenação das ações das organizações sociais.
Martin: Em suas diretrizes de política externa, o ministro José Serra
definiu que a diplomacia não seria "ideológica", nem estaria a serviço de um
partido político. Qual sua opinião a respeito?
Samuel: A politica exterior do Brasil tem de se fundamentar nos objetivos de
soberania, de integridade territorial, de desenvolvimento econômico, social e
politico e se guiar pela Constituição que, em seu artigo 4, define os princípios
da politica externa e, entre eles, o objetivo de promover a integração latino
americana.
A politica externa do Brasil tem de considerar, de um lado, a localização
geográfica do país, com seus doze Estados vizinhos; as assimetrias entre o
Brasil e seus vizinhos; suas extraordinárias dimensões territoriais, de
população, de desenvolvimento econômico; suas disparidades de toda ordem; seus
enormes recursos naturais e , de outro lado, e simultaneamente, as
circunstâncias de um mundo em que se verifica grande concentração de poder
econômico, politico e midiático, com gigantescas multinacionais, com políticas
de restrição ao desenvolvimento econômico e tecnológico, com as Grandes
Potências em crise econômica prolongada e com uma disputa velada por hegemonia
entre os Estados Unidos e a China.
A politica externa dos governos do PT se orientou, com firmeza e coerência,
pelos princípios de autodeterminação, de não intervenção, de cooperação com os
países subdesenvolvidos, de integração da América do Sul, e pelos objetivos de
luta pela desconcentração de poder em nível mundial e pela multipolarização,
pelo multilateralismo e contra o unilateralismo das Grandes Potências, pela
defesa da paz e pelo desarmamento dos países altamente armados, pelo direito ao
desenvolvimento, pelo luta contra o aquecimento global, pelo desenvolvimento
econômico, contra a pobreza.
Assim, na América do Sul foram mantidas relações de cooperação e de respeito
politico com governos tão distintos quanto os da Colômbia, do Peru, do Chile, da
Venezuela, da Argentina, do Uruguai, do Paraguai etc.
Com os Estados Unidos, foi mantida uma política de cooperação, como no caso
do etanol; de respeito mútuo, como no caso da Rodada de Doha, e de divergência,
sempre que necessária, como no caso da ALCA. As relações com o Brasil foram
consideradas pelo governo americano de grande importância, como se pode inferir
dos comentários do Presidente Obama sobre o Presidente Lula.
Com a Europa, o grau de cooperação pode ser demonstrado pelo acordo de
parceria estratégica com a União Europeia, tipo de acordo que a União Europeia
tem com pouquíssimos países, tais como os Estados Unidos e a China; pelo
programa de construção e transferência de tecnologia do submarino nuclear com a
França; pela aquisição, construção e transferência dos aviões de combate
Grippen.
As relações com a China, a grande Potência emergente, são de grande
importância como demonstra o fato de a China se ter tornado o principal parceiro
comercial do Brasil, com crescentes investimentos no país, dos acordos
celebrados com a China, prevendo operações de valor total superior a 54 bilhões
de dólares, da participação, politica e econômica do Brasil, nos BRICS, no Banco
dos BRICS, no Acordo de Reservas e no Banco Asiático de Infraestrutura.
Nas Nações Unidas, a luta pela reforma da Organização pela ampliação e
democratização de seu Conselho de Segurança, em companhia da Índia , do Japão e
da Alemanha; a participação nas conferências de natureza social e econômica; a
criação do Conselho de Direitos Humanos e a luta contra a utilização seletiva e
política dos direitos humanos.
No Oriente Próximo, o Brasil procurou se aproximar dos países árabes através
das reuniões entre a América do Sul e países árabes, com excelentes resultados
políticos e econômicos para todos que delas participaram. Ao mesmo tempo, o
Brasil reconheceu a Autoridade Palestina como Estado, condenou os ataques a Gaza
e os atentados terroristas, de qualquer procedência em qualquer lugar. A
iniciativa do Brasil e da Turquia de negociação exitosa do acordo com a Turquia
mostrou a capacidade da politica externa brasileira de conseguir soluções onde
outros Estados tão mais poderosos haviam fracassado durante tanto tempo.
Com a África, os governos do PT desenvolveram uma política externa cujos
fundamentos eram a dívida histórica do Brasil para com os povos africanos e as
possibilidades de entendimento e cooperação politica e econômica devido ao fato
de ser o Brasil ter sido também uma colônia e nunca um pais imperialista;
subdesenvolvido porém com êxitos importantes em setores como a agricultura de
cerrado e a saúde; da contribuição cultural, econômica, étnica e religiosa das
populações africanas para a construção da sociedade brasileira. Na área
política, o interesse de cooperar em questões relativas à segurança do Atlântico
Sul, a negociação sobre meio ambiente, florestas e mega-diversidade, e sobre
comércio na OMC e outros foros.
Toda a politica brasileira foi baseada nos princípios de não intervenção, de
autodeterminação e de cooperação respeitosa, sem tentativas de ensinar a nenhum
Estado, país ou sociedade como deve se organizar, politicamente ou
economicamente.
Tudo isto prova cabalmente, para quem conhece um mínimo de historia e de
politica internacional para além do que diz a mídia e dos preconceitos
partidários, que a política desenvolvida pelo Governo brasileiro desde 2003 não
foi nem ideológica nem partidária nem visou beneficiar os interesses de um
partido, no caso o PT.
Martin: A América do Sul terá de iniciar uma etapa de acordos de
livre-comércio?
Samuel: O centro da politica externa brasileira tem de ser a América do Sul;
na América do Sul, o Mercosul; no Mercosul, a Argentina. Não compreender isto,
significa enorme miopia e cultivar o fracasso.
Um dos principais objetivos do Brasil e de sua politica externa é construir
condições que sejam propicias ao seu desenvolvimento econômico, social e
politico.
O desenvolvimento econômico e social de um pais como o Brasil, que tem 85 %
de sua população urbana; com uma agricultura que não emprega mão de obra em
grande escala; com um setor de serviços subdesenvolvido; com grande necessidade
de geração de empregos para absorver o crescimento da força de trabalho e os
estoques de mão de obra subempregada, como são os 50 milhões de beneficiários do
Bolsa Família, cujo rendimento mensal é inferior a 77 reais, isto é, a 20
dólares por mês, tem de ser baseado na industrialização, no setor industrial,
base do desenvolvimento de todos os setores da economia.
Pensar em construir uma economia e uma sociedade com base na agricultura
apenas é um absurdo técnico, politico e social.
A industrialização necessita de mercados seguros que são os mercados
regionais através de acordos que estimulem o desenvolvimento das empresas de
capital nacional e atraiam empresas estrangeiras e da ação do Estado para
construir a infraestrutura e complementar a iniciativa privada.
Este mercado na América do Sul é o Mercosul, com sua tarifa externa comum.
Os países industrializados que desejam escapar de suas crises através das do
aumento de suas exportações desejam eliminar a tarifa externa do Mercosul e suas
possibilidades de desenvolvimento industrial e para isto acenam, junto com seus
arautos internos, com a celebração de acordos de livre comércio, que
significariam, logicamente, o fim do Mercosul .
O acordo Mercosul- União Europeia seria, em realidade, o primeiro de uma
série de acordos de livre comércio com os Estados Unidos, a China o Japão, em
que, de um lado, os países do Mercosul, em especial Brasil e Argentina, abririam
totalmente seus mercados para os produtos industriais europeus, e em seguida
americanos, chineses e japoneses muito mais competitivos e avançados, dariam
assimétricas concessões em compras governamentais, e outras concessões, e, em
troca, receberiam concessões, irrisórias, em produtos agrícolas.
Mesmo que as concessões europeias correspondessem ao fim de todos os
subsídios que concedem a seus agricultores europeus e de todos os obstáculos as
exportações agrícolas do Mercosul, o acordo com a União Europeia seria
tremendamente prejudicial aos objetivos de desenvolvimento industrial do Brasil
e da Argentina e também do Uruguai e Paraguai.
Os acordos de livre comercio tão defendidos pela mídia, pelos acadêmicos,
pelos importadores e pelos países desenvolvidos significam o fim do Mercosul,
que é um instrumento importante de promoção do desenvolvimento industrial e,
portanto, econômico de nossos países.
Seria necessário mencionar a UNASUR, a linha de transmissão no Paraguai e
tantos outros temas como o FOCEM, mas o espaço não permite.
Via Carta
Maior
http://www.brasil247.com/pt/247/brasil/235354/Samuel-Pinheiro-Guimar%C3%A3es-%E2%80%98Houve-uma-conspira%C3%A7%C3%A3o-no-Brasil%E2%80%99.htm