O advogado José Roberto Batochio, que se juntou à defesa do ex-presidente
Lula, afirma, em entrevista ao portal Conjur, que o Ministério Público inverteu
a lógica das investigações criminais neste caso: primeiro definiu Lula como
culpado, para depois buscar fatos que o incriminassem; “É uma perseguição com
conotação política, na qual não se investiga determinado ato atribuído ao Lula.
O que se investiga é a pessoa dele, procurando atos para incriminá-lo. Isto não
é legítimo”, avalia
28 de Agosto de 2016 às 09:58 //
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Por Márcio Chaer, Marcos de Vasconcellos e Sérgio Rodas, no portal Conjur
No Direito Penal e Processual Penal, parte-se da investigação de um ato
criminoso para punir o autor. Contudo, essa ordem de apuração foi invertida com
relação ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na operação “lava jato”. No
caso, a força-tarefa elegeu o petista como alvo, e busca a todo custo encontrar
fatos que o incriminem. Isso é o que afirma o criminalista
José Roberto
Batochio, sócio do José Roberto Batochio Advogados Associados, que,
junto com Roberto Teixeira e Cristiano Zanin Martins, comanda a defesa do líder
do PT.
“É uma perseguição com conotação política, na qual não se investiga
determinado ato atribuído ao Lula. O que se investiga é a pessoa dele,
procurando atos para incriminá-lo. Isto não é legítimo”, avalia, destacando que
nenhum moralista resiste a uma devassa feita em sua vida privada.
A chance de combater essa distorção do sistema penal foi o que motivou
Batochio a se juntar a Teixeira e Zanin Martins. O que mais chamou a atenção
dele até agora foi o fato de o caso estar sendo conduzido pelo juiz Sergio Moro,
titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, e não em São Paulo.
“Guarujá é estância balneária paulista e não se confunde com sua congênere
Guaratuba, do litoral do Paraná. O mesmo se diga de Atibaia, onde se situa o
imóvel rural em causa, que não pode ser tomada por Atalaia, cidade do interior
paranaense”, conta, mencionado os locais onde os investigadores suspeitam que
teriam ocorridos crimes de lavagem de dinheiro oriundo de corrupção na Petrobras
e ocultação de patrimônio.
De acordo com o advogado, está claro que existe um “sentimento de
adversidade” dos procuradores da República, policiais federais e do juiz Sergio
Moro com relação ao ex-presidente. E isso, a seu ver, mostra que os objetivos da
“lava jato” são tirar o PT do poder — algo que está bem próximo de ser atingido
— e tornar Lula inelegível no próximo pleito presidencial, em 2018.
Porém, essas ilegalidades da “lava jato” vêm sendo referendadas pelos
tribunais superiores porque os magistrados “estão ouvindo a voz das ruas”,
analisa o criminalista. Por isso, não restou outra opção à defesa de Lula a não
ser
questionar
a falta de imparcialidade de Moro no Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Um exemplo da gana juiz em punir o líder do PT está no aval que deu ao pedido
do MPF de grampear o celular de Roberto Teixeira e o telefone central de seu
escritório, o Teixeira, Martins e Advogados. “É absolutamente reprovável,
inaceitável e inadmissível a interceptação das conversas entre cliente e sua
defesa técnica. Isso não existe nem no USA Freedom Act”, criticou, mencionando a
lei norte-americana que legitima o atropelo de garantias individuais no combate
ao terrorismo.
Batochio foi presidente do Conselho Federal e da Seccional paulista da Ordem
dos Advogados do Brasil. StartFragmentFoi ele, aliás, o responsável pelo
Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/1994), que assegurou diversas prerrogativas da
profissãoEndFragment. O criminalista demonstra algum pessimismo com o clima
punitivista que está em voga no Brasil. Em entrevista à
ConJur,
ele atacou a glorificação de magistrados como Sergio Moro e Joaquim Barbosa,
ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, lamentou a disseminação da
“pandemia” da delação premiada e disse ser cansativo, mas necessário, lutar
contra a maré em defesa das garantias individuais.
Leia a entrevista:
ConJur — Como o senhor entrou na defesa do ex-presidente Luiz Inácio
Lula da Silva?
José Roberto Batochio
– Sem ultrapassar os limites do que me é permitido pela ética
profissional revelar, uma vez que se trata de relação advogado/constituinte,
posso dizer que foi uma decisão pessoal do presidente Lula, a quem, aliás, nunca
se poderá negar o fato de haver sido o governante que promoveu a maior inclusão
social que nossa história registra em todos os tempos. Resgatou-se da
subnutrição toda uma geração de brasileiros da base da pirâmide. São neurônios
que trarão, no futuro, medalhas de ouro, prata e bronze, nas ciências, artes,
esportes etc. Constitui para mim uma honra desempenhar esse patrocínio.
Certo dia, telefonou-me o colega que já vinha coordenando a defesa técnica do
ex-presidente e me informou dessa intenção de Lula e indagou-me se aceitaria a
tarefa. Aceitei.
Claro que já tinha amplo conhecimento de que o ex-presidente e sua família
estavam — e estão — a sofrer, por motivação política, uma devassa sem
precedentes, na qual se inverte a equação do devido processo legal: as
autoridades não investigam um dado fato concreto, revestido de suposta
ilicitude, para responsabilizar seus autores como seria correto. Mas o MP
inverte o que diz a lei e escolhe um acusado para, depois, procurar os fatos.
Devassam as pessoas do ex-presidente e de seus familiares, a buscar, nesse
intento e a partir de um garimpo microscópico, qualquer fato ilícito que possa
servir de argumento para uma condenação criminal e sua consequente
inelegibilidade.
Em suma, aqui não se investiga um fato penalmente relevante, certo e
determinado, para se responsabilizar seus autores, como preconiza a lei, mas se
investigam biografias selecionadas com o escopo de se tentar encontrar qualquer
episódio incriminador... E, nesse propósito, nem mesmo as elementares regras
procedimentais de fixação de competência do juízo são respeitadas,
violentando-se, sem cerimônias, o princípio do juiz natural, garantido na
Constituição da República e inserido no conjunto de franquias que compõem o
due process of law.
ConJur – O senhor diz que nas investigações sobre o ex-presidente
Lula, houve uma inversão de caminhos: em vez de pegarem o ato e levarem para a
pessoa, pegaram a pessoa e procuram o ato. Alguma pessoa resiste a essa revista
íntima?
José Roberto Batochio –
Neste caso elegeu-se aprioristicamente um culpado, a pessoa que se quer – por
que se quer – incriminar. Dado o fato de que nenhuma conduta delituosa que possa
ser atribuída à sua pessoa foi encontrada, deliberou-se submeter toda sua vida a
um
scanner investigatório, a uma ultrassonografia contrastada para,
nessa rigorosíssima exploração, se tentar deparar com algum achado de relevância
jurídico-penal. Nada feito! Nenhum ilícito se encontrou e nada se provou. E
atente para o fato de que dessa
blitzkrieg que se assestou contra a
vida de Lula (contra quem nada de ilícito se comprovou) certamente não
escapariam muitos Catões da nossa República que, com cinismo e consciência
hipotecada, se travestem de acusadores moralistas...
Como nunca houve o crime pelo qual se ansiava, resta agora aos
Javerts a “bala de prata”, é dizer, o escambo com delatores de plantão
para, em derradeira e desesperada tentativa, se fabricar algo incriminador. A
proposta que se faz é generosa e atraente: uma estória que incrimine o
ex-presidente em troca de liberdade e deliciosa fruição de parte do butim
saqueado... Quem vai querer? Restam poucos dias...
ConJur — A questão da competência territorial é parte
disso?
José Roberto Batochio — É,
sem dúvida alguma. A questão da deliberada inobservância da competência
territorial com o objetivo de se escolher um determinado e rigoroso juiz (em
princípio incompetente e suspeito) para julgar a causa do ex-presidente é tão
óbvia quão inaceitável.
Como de comum conhecimento, os órgãos da jurisdição que se acham investidos
de competência em todo território nacional são apenas os Tribunais Superiores
(STF, STJ, TST etc.), mas, mesmo assim, não de competência originária na maior
parte dos casos e não de forma ilimitada, em qualquer matéria (ao TST, por
exemplo, está afeta a competência para julgar apenas conflitos laborais).
Deixando-se ao largo o caso dos tribunais de Justiça e regionais federais em
sentido amplo, os juízes de primeiro grau somente podem decidir dentro dos
limites territoriais de suas comarcas ou subseções judiciárias, isto segundo
critérios aprioristicamente estabelecidos nas leis do processo e de organização
judiciária.
Ora, como regra geral o juiz criminal competente para conhecer e julgar
determinado fato apontado como delituoso é aquele que exerce jurisdição no local
em que ele ocorreu e não outro, remoto e com artificial “competência” para
julgar até mesmo assunto verificado em outra Unidade da Federação. Assim se
passa, por igual, na jurisdição civil, em que o réu deve ser demandado, em
regra, no foro de seu domicílio.
Há, claro, exceções a essa regra, mas são realmente excepcionais situações de
prorrogação, as quais, todavia, não se fazem presentes nos casos que envolvem
imputações relativas ao apartamento “tríplex”, ao “sítio de Atibaia” e às
palestras contratadas a partir da sede do Instituto Lula, todos situados dentro
do estado de São Paulo (e não do Paraná).
O juiz competente para julgar o caso ocorrido dentro dos limites territoriais
de sua jurisdição é denominado “juiz natural”, prévia, impessoal e abstratamente
determinado pelas leis e que se contrapõe ao “juiz de exceção”, aquele escolhido
a dedo para julgar uma causa específica ou pessoa determinada, segundo os
interesses ou as circunstâncias da ocasião...
Já vai longe o tempo dos “tribunais de exceção”, de que foi triste exemplo o
“Tribunal de Segurança” do Estado Novo, ou o escandaloso desvio de competências
para afastar o juiz natural e substituí-lo por “julgadores especiais”, como
aconteceu com civis “inimigos do regime”, por prática de crimes “contra a
segurança nacional”, pelas Auditorias de Guerra, no período da ditadura militar
instaurada em 1964.
Se é certo que o réu não pode escolher o juiz que deva julgá-lo, mais certo
ainda é que o juiz não pode jamais escolher o réu que queira julgar.Pelo menos
no Estado Democrático de Direito.
No caso em apreço, temos o juízo da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba,
estado do Paraná, região meridional do país, a pretender julgar fatos
(envolvendo o apartamento “tríplex”, o sítio e remuneração de palestras)
supostamente ocorridos no estado de São Paulo, mais precisamente nas comarcas de
Guarujá, Atibaia e capital de São Paulo, respectivamente. Isso mesmo sem existir
qualquer conexão ou elo com o tema “petrolão” (Petrobras), cuja cognição se acha
submetida àquele juízo paranaense. Como classificar tal hipertrofia
jurisdicional, anômala e sem causa legal, senão como afronta ao princípio
constitucional do juiz natural? Afinal, Guarujá é estância balneária paulista e
não se confunde com sua congênere Guaratuba, do litoral do Paraná. O mesmo se
diga de Atibaia, onde se situa o imóvel rural em causa, que não pode ser tomada
por Atalaia, cidade do interior paranaense...
Sem quebra de respeito às autoridades que já se pronunciaram em sentido
contrário, essa inaceitável acromegalia funcional do juízo da 13ª Vara Federal
do Paraná configura escancarada afronta aos princípios constitucionais
fundamentais, garantidores das liberdades, que compõem o plexo normativo
estruturante do devido processo legal.
ConJur — Mas vocês entraram com pedido de exceção de
incompetência...
José Roberto Batochio
- De fato, opusemos a pertinente Exceção de Incompetência objetivando
fosse declinada a jurisdição para os juízos naturais, que são os que abrangem os
territórios jurisdicionais de Guarujá, Atibaia e São Paulo, para os três temas
em controvérsia e que tratam do “tríplex”, do sítio e da remuneração de
palestras à LILS, respectivamente. E ponha-se logo em destaque que aforamos a
exceptio declinatoria fori antes mesmo de instaurada eventual ação
penal já que, se o juiz impugnado é incompetente para a ação penal (que é o
principal), também fica impedido para decidir sobre medidas cautelares —
profundamente invasivas — que lhe são correlativas (que são o seu acessório
instrumental), vedada a decretação de prisões, de buscas, de quebras de sigilos
etc., que alcançam a privacidade e o
status libertatis et dignitatis
das pessoas investigadas no feito que ele, ao cabo, não poderá julgar...
Para impugnar essa nossa pretensão de remessa das investigações ao seu juiz
natural, os doutos e cultos procuradores da República paranaenses oficiantes
naqueles autos verteram argumentos que se esparramaram por nada menos que 70
laudas, nas quais insistem na competência
urbi et orbi da 13ª Vara
Federal local, argumentando com uma suposta e cerebrina conexão que existiria
entre os três feitos citados e os relativos ao assunto Petrobras que ali
tramitam. Nada mais equivocado. Não faz qualquer sentido se afirmar que todas as
receitas auferidas (recebimentos pecuniários) pelas empreiteiras (Odebrecht,
OAS, Andrade Gutierrez, Engevix, Camargo Correa etc.) tenham tido uma única e
exclusiva origem: Petrobras! Ora, são conglomerados industriais de enorme
envergadura, alguns deles multinacionais com presença em 27 países, nas
Américas, Europa, Ásia. Como então se construir a estapafúrdia teoria de que
todos os recursos financeiros dessas empreiteiras só tenham advindo de uma única
fonte, qual seja a petroleira brasileira? Pois bem, nessa ordem de ideias quem
quer que tenha recebido (que aqui não é efetivamente o caso), ou seja acusado de
haver recebido qualquer tipo de contribuição eleitoral, remuneração, pagamento,
salário ou valor de tais construtoras, passaria a ser, obrigatoriamente,
beneficiário da alegada fraude contra a Petrobras... Logo, co-autor ou
co-partícipe de toda a suposta fraude... Isso é simplesmente surrealista,
ridículo. Tomemos o exemplo Odebrecht: do global de todas suas receitas, o
recebido por força de negócios com a Petrobras soma inexpressivos quatro ou
cinco (4% ou 5%) por cento do faturamento... E os demais 95% dessa receita, não
se destinaram a nada? Não serviram para pagar ou remunerar nada? Deste
porcentual de 95% nada foi destinado a lícitas contribuições eleitorais? A conta
não fecha... A aritmética está a desmistificar essa construção primária
(refiro-me ao argumento de que todo dinheiro das empreiteiras se resumia a
pagamentos da Petrobras) da conexão artificialmente fabricada para sustentar uma
competência que jamais existiu. Por isso que foram necessárias 70 páginas.
Dir-se-ia:
direito curto, páginas longas...
ConJur — Nesse sentido, os tribunais superiores estão se omitindo em
relação ao fato de a vara de Sergio Moro abarcar todos os
casos?
José Roberto Batochio -
Certo é que poderiam — especialmente o STF — ter determinado a remessa dos autos
que tratam destes assuntos ao juízo natural, quando dos desmembramentos
determinados, mas a Corte Suprema se limitou a ordenar a sua baixa “ao primeiro
grau” porquanto inexistente investigado com foro especial por prerrogativa de
função. Não o fizeram aludidos tribunais, contudo, deixando de restabelecer,
concedidas as necessárias vênias, a ordem constitucional violada, no que toca à
observância do devido processo legal, especificamente à franquia do juiz
natural. Daí o acionamento de órgãos internacionais de tutela de direitos civis
e políticos e de direitos humanos para restauração dos direitos violados.
Comenta-se muito no meio jurídico que, de tempos a esta parte e em certas
circunstâncias, certos setores da Corte Suprema têm estado muito mais atentos à
“voz das ruas” que ao sentido estrito das normas reitoras da Lei Fundamental,
que, aliás, é a justa medida de todas as coisas. Não quero crer que assim esteja
a acontecer. Entendo que a única voz que o Judiciário deva ouvir, para todas as
decisões, seja a voz da Constituição da República Federativa do Brasil e a do
comando das leis que integram o ordenamento jurídico pátrio. Aliás, é de seu
dever.
“Anseio das ruas”, “vox populi”, “opinião publicada”, “soerguimento da turba
multa”, “histeria na rede social”, “concerto de acusadores e de suas associações
de classe com setores da mídia”, nada disso pode transpor o limiar sagrado das
cortes judiciárias e adentrar o templo de Têmis. Cruzado esse Rubicão e a
Justiça terá sido definitivamente expulsa, pelas portas dos fundos... Nossos
juízes são — e devem ser — infensos a qualquer espécie de pressão ou ameaças de
retaliações públicas através dos meios de comunicação de massa (estas muito
comuns quando ousam a coragem de, cumprindo a Constituição, mandar libertar ou
absolver acusados), pois que como assoalhava Sobral Pinto em relação à advocacia
(advocacia não é profissão de covardes), se pode afirmar que julgar não é para
impressionáveis ou temerosos.
Sobre julgamentos ao influxo de paixões populares, a Historia é pródiga em
tragédias, em iniquidades, em horrores e barbáries. Definitivamente, a paixão
das ruas não se compatibiliza com a sobranceria e com a serenidade que devem
presidir os julgamentos civilizados, em que têm ingresso proibido a perseguição,
o ódio, o fundamentalismo, o messianismo e a “declaração de combate e guerra” ao
que quer que seja. Neles só cabem sobriedade, equilíbrio e imparcialidade e,
quando não redundar em injustiça, um pouco de humanismo e compaixão é sempre bem
vindo...
Em resumo, o que se busca nesta investigação não são privilégios e
imunidades, senão julgamento legal, justo, imparcial, afastado das paixões e
preconceitos. É pedir muito?
ConJur — Qual é o efeito prático esperado dessa ida à ONU? O que o
senhor acha que irá acontecer?
José Roberto
Batochio — A despeito de tudo que se concretizou em matéria de
agressões ao devido processo legal e violência contra o direito de liberdade do
ex-presidente da República (foi, grampeado, teve sua intimidade exposta pela
divulgação de diálogos íntimos, devassado em seus documentos e registros,
impedido de assumir cargo de ministro para o qual foi legalmente nomeado, sofreu
busca e apreensão em domicílios familiares e foi, por ordem de juízo
incompetente, conduzido à força às dependências externas da Polícia Federal para
depor), as cortes de Justiça brasileiras têm tolerado que esse estado de
ilegalidade perdure, prolongando-se no tempo. Um magistrado apontado como
suspeito e manifestamente incompetente continua a dirigir, digamos assim, as
investigações e a decretar medidas ilegítimas que alcançam, de modo abissal,
seus direitos básicos, fundamentais. Sendo o Brasil signatário de tratados
internacionais através dos quais se obrigou a coibir práticas atentatórias aos
direitos civis e políticos, bem como violações aos direitos humanos, Diplomas
estes que foram devidamente aprovados pelo Congresso Nacional e passaram a
integrar nosso ordenamento jurídico, é lícito a qualquer do povo recorrer a
esses órgãos internacionais, na busca de providências que exortem o retorno à
legalidade o país signatário que permitiu tais ilegalidades em seu território. O
Estado brasileiro está a ser notificado para prestar informações sobre a
denúncia de tais violações. Com estes informes, o reclamo que tramita na ONU
será instruído e, se aceito, será julgado para o efeito de se declararem
existentes (ou não) as violações denunciadas, com as consequências censórias
decorrentes. É bom registrar, com a ênfase necessária, que tal pedido de
providências não implica qualquer desdouro ou desgaste à imagem das autoridades
e do país; trata-se de um instrumento jurídico disponível e de utilização mui
frequente em democracias amadurecidas de todos os Continentes, como, por
exemplo, as da Europa Central e Ibérica, que já tiveram países advertidos e
foram chamados a fazer cumprir o compromisso de respeito a esses direitos.
Aguardemos.
ConJur — O senhor considera a condução coercitiva uma espécie de
detenção, não é?
José Roberto Batochio
– Sim, uma forma de privação de liberdade, de cerceamento do direito de
ir e vir, com brevíssima duração. Categorizemos o fenômeno para deixar muito
claro que no nosso sistema legal, em que não há prisão perpétua, o gênero
privação de liberdade por ordem de autoridade competente se compõe de várias
espécies: a definitiva decorrente de sentença condenatória passada em julgado
(cumprimento da pena), cuja duração vem declarada na sentença e no respectivo
título executório; as processuais (provisórias) como a decorrente do flagrante
delito; a preventiva, de duração não fixada mas que pode se estender por meses;
a temporária, que tem breve duração mas é passível de prorrogação; e uma
modalidade de supressão do direito de locomoção
sui generis, de
brevíssima duração, que foi apelidada de “condução coercitiva”. Trata-se, sim,
de medida de coerção física sem previsão legal e que suprime a liberdade, logo,
é detenção. Para os que insistem em negar que esta modalidade de constrição
corpórea priva de liberdade o sujeito passivo ou “alvo”, gostaria de lembrar a
verve ilustrativa de Leonel Brizola, quando esgrimia com sofistas políticos que
pretendiam negar-lhe as mais claras evidências. Dizia então o brasileiríssimo e
nacionalista ex-governador do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro: “se tem
boca de jacaré, dentes de jacaré, olhos de jacaré, couro de jacaré, patas de
jacaré, rabo de jacaré, vive nos rios e lagos ficando apenas com os olhos
emersos e devora peixes menores, só pode ser jacaré! Dê-lhe o nome que quiser,
mas será sempre jacaré!”...
Atenção, porém; ao contrário das demais e anteriormente mencionadas, essa
modalidade de custódia não tem previsão no nosso ordenamento jurídico (a
condução coercitiva tratada no artigo 260 do CPP é outro instituto e pressupõe a
recalcitrância daquele que já foi anteriormente intimado para praticar
determinado ato processual), mas decorre de “legislação pretoriana”, é dizer,
cuida-se de obra exuberante de alguns membros do Poder Judiciário que se julgam
com competência para alterar a ordem jurídica, “legislando” sobre Processo
Penal, que (ainda) é tarefa do Congresso Nacional... Tempos estranhos. Antes, na
ditadura, eram os autoritários de uniforme que sepultavam as garantias e
liberdades insculpidas nas leis, para o que editavam os famigerados atos
institucionais, agora...
ConJur — No Brasil, temos uma situação em que o principal líder
popular está acossado, assim como o presidente de um dos principais bancos do
principal do país, porque um criminoso citou o nome dele ao telefone. A operação
“lava jato” é um projeto de poder de seus
protagonistas?
José Roberto Batochio
– Oportuna a indagação. A mim me parece temerário arriscar um
prognóstico assertivo, lançado não sobre dados empíricos, mas tão somente na
análise exploratória do subjetivismo dos personagens, à vista de seus atos e de
suas manifestações. Não me sinto seguro e habilitado a tamanha perigosa
especulação. Neste caso, a assertividade poderia representar temeridade.
Abordando o assunto apenas pela rama em caráter hipotético, o que se pode
extrair é que as aparências sugerem mais um deslumbramento de onipotência, um
paroxístico exercício de poder, um messianismo, um rigorismo de inspiração
doutrinária exótica (bom dia, Tio Sam!), em que não se detectam quaisquer
compromissos ou preocupações com os consectários macroeconômicos, laborais e
sociais do terremoto avassalador que engolfou gigantescas empresas brasileiras e
derreteu centenas de milhares postos de trabalho. Pode ser aquela visão do mundo
que só considera o que se situa aquém das cancelas, além, é claro, a própria
imagem pública. Pode-se cogitar, também, de mimetismo em relação à rica,
estranha e violenta sociedade americana...
Observe-se que o exercício do poder incontido se auto-alimenta e, aquecido
pela chama da vaidade pessoal, tende ao infinito. Certa ocasião, o notório
ex-delegado de Polícia Federal, Protógenes Queiroz, afirmou que se deu conta do
ilimitado espectro da potencialidade de suas então funções quando teve a
percepção de que, com os instrumentos legais que aparelham a atividade
investigatória e persecutória no Brasil, “poderia prender até o presidente da
República”. Tempos passados desde essa manifestação, e nos deparamos hoje com
anelos justiceiros que acham que, em represália a decisões garantistas que lhes
desagradam, podem acuar moral e injustmente até ministro do Supremo Tribunal
Federal... Intolerável!
ConJur — A delação premiada pode ser um instrumento de
defesa?
José Roberto Batochio –
Conceitual e abstratamente, sim. Mas não na pulsante realidade da defesa
concreta e efetiva, inserida na ampla órbita traçada pela Constituição da
República. Ordinariamente, a delação premiada tem como pressuposto básico a
renúncia de direitos, mecanismos defensivos e garantias essenciais (alguns dos
quais, aliás, inabdicáveis), tais como o direito de permanecer em silêncio
(revogando-se aí o constitucional
privilege against self
incrimination), o direito ao duplo grau de jurisdição, o direito de
recorrer ou de impetrar
habeas corpus etc. Ora, como se poderia
entender a abolição casuística de todos os instrumentos legais de autodefesa e
de defesa técnica e, mesmo assim, se aceitar que essa supressão da defesa
constitui um meio de defesa? Trata-se de oxímoro.
ConJur — O que o senhor acha das chamadas dez medidas contra a
corrupção alardeadas pelo Ministério Público
Federal?
José Roberto Batochio -
Ao discurso do combate à criminalidade que a todos aflige — que, se levado a
efeito dentro de regras civilizadas e democráticas, garantidos os direitos
fundamentais do acusado, mereceria apoio – o que se pretende é eliminar
franquias irrenunciáveis, direitos básicos dos cidadãos. Há propostas
surpreendentes, para se dizer o menos, nessa iniciativa de alteração legislativa
de origem popular (o MPF fez colher as assinaturas necessárias em todo país).
Iniciemos pela mais gritante impropriedade, qual seja a convalidação da prova
ilícita, desde que produzida ou coletada de boa fé. O quer isso exatamente
significar, do ponto de vista da técnica legislativa, quando o que se lê do
inciso LVI do artigo 5º da Constituição da República é que “
são
inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”?
Pretende-se revogar essa cláusula nuclear, pétrea? Será que a sensação de
onipotência faz crer superioridade até em relação à Lei das Leis?
Já pelo prisma da realidade factual, o que precisamente significaria a
aludida “boa fé” do instrutor que recolheu ou produziu a prova “fora da lei”? O
torturador (e tomemos a tortura para obter confissão como exemplo extremo) dirá
que submeteu a afogamento o investigado confitente “por engano”, ou porque
estava a pretender “treiná-lo para provas de natação nas Olimpíadas do Rio de
Janeiro”? Ou que o “pau de arara” foi equivocadamente tomado por “barra fixa”
para exercitar o infeliz? Ou, ainda, o grampo telefônico autorizado era de um
terminal e acabou se escutando outro, “por engano” e aí se colheu a prova
inicialmente viciada que se converteu em legítima? Estamos a falar da tortura
física, mas que se dirá da psicológica ou “branca” em que se impõe o sofrimento
apenas com a utilização do dramático sistema carcerário do país para se alcançar
o resultado desejado?
Francamente...
Os testes de integridade em candidatos ao exercício de funções públicas, o
plano
goebbeliano de propaganda com estímulo à delação de colegas e
usuários de serviços, sob anonimato, soam
déjà vu quando se revisita a
história neste conturbado século XX...
A criminalização da fortuna a pretexto do combate ao enriquecimento ilícito
de quem exerce função pública (como fica aí o industrial que se elegeu Senador?
E o servidor público que herdou bens familiares geradores de renda?) Quais
rendas ou vencimentos? Os provenientes da remuneração pela função ou os de sua
atividade industrial? Qual o parâmetro da renda a ser cotejada com o patrimônio?
Pode ser o início de uma escalada que terminará, no futuro próximo, com a
criminalização de patrimônios granjeados por qualquer meio, seja ele qual for...
Que se dizer da supressão de diversos recursos da defesa ao argumento da
celeridade processual? Só faltou mesmo a proposta de suspensão ou extinção do
habeas corpus, mas isto foi truculência do regime autocrático do
passado, cujo ideário parece estar a ser exumado. A prescrição da pretensão
punitiva estatal também é alvo de ataque na proposta. Como não é possível
simplesmente extingui-la (a prescrição), tenta-se sua desnutrição. Além dessas,
se acrescem outras propostas de medidas inaceitáveis e – muitas delas –
inconstitucionais, tudo coroado pela introdução de uma nova modalidade de prisão
processual – mais uma ! – extraordinária e manejável para o fim de se localizar
e reaver o produto econômico da infração, e, assim, evitar que possa o
investigado, entre outros dispêndios, “financiar sua defesa”... Uma pérola!
ConJur — Sustenta-se que só pode ser considerado culpado aquele que
foi condenado por sentença transitada em julgado. Mas como isso pode prevalecer
se o Supremo mudou de entendimento e permitiu a execução da pena antes do
trânsito em julgado?
José Roberto Batochio
– O princípio da não culpabilidade (ou da presunção de inocência) está
expresso no artigo 5°, inciso LVII, da Constituição da República, em que se lê
que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal
condenatória. Acha-se no Título dos Direitos e Garantias Individuais, cujo
Capítulo I enuncia direitos que consubstanciam preceitos imutáveis, mesmo pelo
constituinte derivado e por meio de proposta de emenda constitucional. Em suma,
cláusula pétrea. Tudo muito claro e, como enuncia a regra básica da
hermenêutica,
in claris cessat interpretatio. Sem condenação criminal
passada em julgado, portanto, nada de culpado, mas sim uma pessoa
constitucionalmente presumida inocente.
Parece-me ao largo de qualquer questionamento o fato de que, se a Lei Máxima
considera inocente aquele contra quem não há sentença penal passada em julgado,
inconstitucional e inaceitável se mostra remetê-lo ao cárcere – presumido
inocente que é –, tenha embora decisão condenatória de segundo grau lavrada em
seu desfavor. É que, em tais circunstâncias, não está formado o titulo
executório da reprimenda. Tudo muito claro.
Ora, ou se observa e se faz cumprir o preceito contido em seu corpo
permanente como imutável, ou se está a conspirar, abertamente, contra a
Constituição a pretexto de interpretá-la. É literalmente inacreditável que se
possa, em nome de não sei quais conveniências ou ruídos sociais, subtrair
eficácia a preceito da Lei Maior.
Tenho e sempre tive o maior respeito pelos Poderes constituídos e, sobretudo,
pelo Poder Judiciário do meu país, em cujo vértice se acha o Supremo Tribunal
Federal. Deste, a missão precípua é a guarda e o zelo pela observância da
Constituição. Essas instituições sustentam o Estado Democrático de Direito que
conseguimos construir.
Não posso aceitar, todavia, que a Constituição da República Federativa do
Brasil possa ser interpretada contra sua própria essência. Nem mesmo pelo STF ou
por quem quer que seja. Não há “ativismo”, “protagonismo” ou “pretorianismo” que
possa se invocar para justificar a perpetração desse grave ato de infidelidade à
ordem constitucional.
É preciso se ter em mente que a Constituição é o que ela é, como expressão da
soberania de um povo, manifestada por seus legítimos representantes em
assembleia nacional constituinte, e não aquilo que os pretórios quiserem
arbitrariamente que ela seja, máxime contra sua letra e seus enunciados.
Já se disse e já se escreveu no ambiente de determinada Corte que “a
Constituição é aquilo que nós dissermos que ela é”. Sofisma! Quintessência da
pretensão. A Carta Política não é um corpo sem alma, um
zumbi (hoje se
diz
walking dead, não é mesmo? risos...) normativo, vagando à procura
de alma que gravite na órbita das percepções dos tribunais. A Carta é a opção
axiológica proclamada pelo povo.
Eis porque soa incompreensível que a Corte Suprema possa, negando a
Constituição, mandar cumprir pena um presumido inocente e contra quem não há
condenação penal transitada em julgado. Não há argumentos que possam embaçar
essa gritante violação.
Nos últimos tempos temos visto decisões da Excelsa Corte que, máxima vênia
concedida, mais que se afastarem do comando constitucional, com ele se mostram
em manifesta fricção.
À vista do que se contém no artigo 2º da Constituição da República, no
sentido de que os poderes são independentes e harmônicos entre si, fica difícil
entender como o STF possa proferir decisões invasivas das competências
reservadas ao Legislativo e ao Executivo. Lembremo-nos de que, por decisão
cautelar monocrática, o Supremo sobrestou a posse de um ministro de Estado
legitimamente nomeado pela Chefe do Poder Executivo da União, no lídimo
exercício de ato de sua estrita e exclusiva competência...
Em outra decisão recente, “decretou” a “prisão em flagrante” (e expediu
mandado de captura) de um Senador da República, em pleno exercício do mandato,
impondo-lhe prisão processual, quando o parágrafo 2º do artigo 53 da Carta
dispõe que, após a diplomação, o membro do Congresso Nacional não pode ser
preso, salvo em flagrante delito (que no caso, nunca houve) por prática de crime
inafiançável (que também não era o caso)...
Pior de tudo é que o Senado Federal, intimidado e acuado pela opinião
publicada, não repeliu essa medida de força, que afeta suas mais básicas e
elementares prerrogativas institucionais de independência e autonomia. É de se
lamentar.
Há pouco, órgão fracionário da Excelsa Corte recebeu denúncia oferecida pelo
Parquet e fez instaurar ação penal contra excêntrico parlamentar da
Câmara Baixa, por crime de linguagem, ou, pelo menos, em razão de sua
manifestação verbal no recinto do Parlamento. O conteúdo da manifestação parece,
de fato, imprópria, inadequada e até execrável, mas, a despeito disso, achava-se
o deputado sob o pálio da imunidade parlamentar – modalidade liberdade de
expressão – nos exatos termos do que dispõe o artigo 53 da Constituição da
República. Ali se lê que o congressista é inviolável, civil e penalmente, por
quaisquer de suas opiniões palavras e votos. Fala-se aqui do princípio, não do
mérito do pronunciamento. É como sentenciou François Marie Arouet, o Voltaire,
“posso não concordar com uma só palavra do que dizeis, mas hei de defender até à
morte o direito que tendes de dizê-las”.
A liberdade de palavra -
freedom of speach – é da essência do Poder
Legislativo e fundamental para sua missão institucional, não importa quão
contundente, inadequada e até estapafúrdia seja a locução proferida. Cabe à
própria Casa a que pertence o congressista adotar providências disciplinares
cabíveis, que podem chegar até à cassação do mandato, em caso de abuso de
prerrogativas. Assunto
Interna corporis, portanto.
Recorde-se, ainda, decisão que determinou o afastamento de um parlamentar da
presidência da Casa a que pertence, e, de quebra, suspendeu o exercício do
mandato que lhe foi conferido nas urnas pelo povo, através do voto secreto,
universal e direto... Não discuto o mérito dos atos dos personagens, mas os
princípios da independência e autonomia, assegurados no comando constitucional.
Será que, nesta hipótese, teria entendido a Corte Excelsa que o artigo 319, VI,
do Código do Processo Penal, nova redação, se sobrepõe à norma constitucional
que estabelece a independência dos Poderes?
Se considerarmos o texto da
Lex Legum e decisões como as que acabei
de trazer, nos daremos conta de que a República está a viver uma espécie de
esquizofrenia, com sinais trocados, que nos coloca bem longe do paradigma a que
se referiu, com franca admiração, Alexis de Tocqueville quando discorreu sobre a
democracia na América.
É sempre bom rememorar e não faz mal repetir: não nos regemos pelo sistema da
common law e, por isso e sem qualquer concessão ao positivismo
ortodoxo, a referência que se impõe é a da norma constitucional, medida de todas
as coisas. Sua usual substituição pela autorreferência, é pecado funcional que
compromete o sistema e conspira contra a República.
http://www.brasil247.com/pt/247/poder/252105/Batochio-MP-definiu-Lula-como-culpado-para-depois-buscar-os-fatos.htm